Estrela Matilde, a bióloga que quer “mudar o mundo, uma ilha de cada vez”

Bióloga portuguesa é a directora da ONG africana que está a tentar salvar as tartarugas marinhas da ilha do Príncipe e que foi galardoada na edição deste ano dos Whitley Awards — prémios que distinguem projectos de conservação da biodiversidade considerados exemplares. Estrela Matilde é a convidada do segundo episódio do podcast Azul.

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Estrela Matilde vive no continente africano há dez anos e é directora executiva da Fundação Príncipe, ONG fundada em 2015 GUSTAVO GALHARDO FIGUEIREDO

Pessoas que no passado foram caçadores ou caçadoras de tartarugas marinhas na ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe, hoje ajudam a zelar pela sua conservação. A “culpa” é da bióloga portuguesa Estrela Matilde. Todas as semanas do ano, mais de 30 monitores percorrem as praias do território, tentando impedir a captura ilegal de uma mão cheia de espécies destes animais. Em causa está a preservação de ecossistemas únicos e que se encontram em risco.

Esses mais de 30 monitores integram a equipa de 64 elementos da Fundação Príncipe, organização não-governamental (ONG) que tem como missão conservar os ecossistemas da ilha do Príncipe e cuja directora executiva é Estrela Matilde. A bióloga de 36 anos foi, em Abril, uma das pessoas galardoadas na edição deste ano dos Whitley Awards. Estes prémios são atribuídos pela instituição de caridade britânica Whitley Fund for Nature e visam distinguir os ou as líderes de projectos de conservação da biodiversidade considerados destacados ou exemplares.

Estrela e a Fundação Príncipe, fundada em Abril de 2015, foram reconhecidas, também mas não só, pela forma como têm envolvido a comunidade local na protecção das tartarugas marinhas que têm as águas da ilha do Príncipe como habitat.

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Todos os anos, a Fundação Príncipe dinamiza várias iniciativas de sensibilização ambiental para proteger as tartarugas marinhas e os ecossistemas do Príncipe Vasco Pissarra

O pequeno vídeo de cerca de dois minutos que a organização dos Whitley Awards criou para apresentar Estrela e o raio de acção da Fundação Príncipe conta com a narração de David Attenborough. Não é desmerecido o destaque que está a ser dado à bióloga: em poucos anos, a Fundação Príncipe tem contribuído para algumas revoluções na ilha onde está sediada.​

O arquipélago de São Tomé e Príncipe é uma importante área de reprodução e alimentação para cinco das sete espécies de tartarugas marinhas que há em todo o mundo: a tartaruga-comum (Caretta caretta), a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), a tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), a tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea) e a tartaruga-verde (Chelonia mydas). Mas tais espécies estavam, até há pouco tempo, a ser “dizimadas” na ilha do Príncipe.

É o que refere Estrela Matilde, que explica ao PÚBLICO que a tartaruga era um recurso alimentar significativo e uma “fonte de proteína muito grande nos anos 1990”. “Felizmente”, continua a bióloga, várias organizações têm, desde então, feito esforços para “integrar a conservação das tartarugas nas políticas nacionais”.

A Fundação Príncipe tem sido uma dessas organizações. O maior projecto da ONG — isto é, aquele que mobiliza mais elementos da equipa e, também, o que tem o maior orçamento (cerca de 120 mil euros por ano) — centra-se na conservação das tartarugas. É denominado Protetuga e tem várias linhas de actuação. Uma delas passa pelo combate à captura ilegal (as tais acções de monitorização ou patrulha a que fazíamos referência no início). Mas há também uma componente de sensibilização. A ONG, sustenta Estrela, trabalha com “mais de duas mil crianças nas 11 escolas da ilha” do Príncipe. Faz peças de teatro e organiza jogos e brincadeiras que visam falar aos mais novos dos riscos que as tartarugas marinhas enfrentam — e, também, de como esses riscos derivam em parte significativa da mão humana.

Estrela fala de uma “lavagem ao cérebro” positiva. “Fizemos uma lavagem ao cérebro às crianças da ilha. Comer tartarugas já não faz parte da cultura aqui”, diz, salientando que, de resto, a componente de sensibilização do Protetuga não envolve só a interacção com os mais novos. A ONG criou, em anos recentes, um museu que é um espaço “onde se aprende sobre o ciclo de vida das tartarugas” e as ameaças que as fragilizam. A Kaxí Tetuga (ou a Casa da Tartaruga) tem, refere Estrela, uma “sala cheia de plástico”, que dá conta da dimensão do problema que a poluição marítima constitui para as tartarugas.

“Temos tido algumas tartarugas juvenis com fibropapilomatose no Príncipe”, diz a bióloga, que explica: a fibropapilomatose é uma doença caracterizada pela presença de tumores que, não sendo malignos, “podem causar a morte” das tartarugas caso se alojem em zonas cruciais, como “os olhos ou as barbatanas”. Há estudos científicos que sugerem que a ocorrência da doença é mais frequente em regiões com índices de poluição elevados.

De onde vem tanto lixo? O GPS dirá

A luta contra o plástico é outra das grandes bandeiras da Fundação Príncipe. E versava sobre poluição marítima o primeiro projecto que Estrela geriu na ilha do Príncipe, numa altura em que a ONG “ainda nem existia” (há dez anos, a bióloga foi para o continente africano para, ao longo de seis meses, fazer “a certificação ambiental de um grupo de hotéis na ilha”; seis meses acabaram por se tornar uma década).

Esse primeiro projecto, que “foi lançado por uma empresa turística” e era apoiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), chamava-se Water and Recycle e andava à volta de “um desafio simples”: “Por cada 50 garrafas de plástico que as pessoas recolhessem, dávamos-lhes uma garrafa em aço inoxidável e reutilizável”, conta Estrela, que diz, divertidamente, ter criado um “monstro”. “Miúdos na rua perseguiam-me com sacas e sacas cheias de plástico”, lembra, alegando que em três anos foram recolhidas mais de 750 mil garrafas de plástico. “Fiquei chocada com a quantidade de plástico que existe numa ilha onde vivem só oito mil pessoas. E mais teríamos recolhido se tivéssemos dado continuidade ao projecto.”

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A Fundação Príncipe apoia a Cooperativa de Valorização de Resíduos, um grupo criado por dez mulheres da comunidade local que faz e comercializa jóias artesanais a partir de garrafas de vidro Vasco Pissarra

Estrela sublinha que a Fundação Príncipe vai usar o dinheiro concedido pela Whitley Fund for Nature — o prémio é de 40 mil libras, o que equivale a mais de 47 mil euros — para perceber que países são responsáveis pela poluição que os ecossistemas da ilha de Príncipe enfrentam. “A Praia Grande, que é a principal praia de nidificação das tartarugas, está cheia de plástico todos os dias e esse plástico não vem da ilha. As 750 mil garrafas foram consumidas aqui, sim, mas o plástico que está na praia não é de cá”, defende a bióloga.

Para tentar perceber de onde é, a ONG vai, com parceiros internacionais, “taggar com GPS” cinco garrafas de plástico, que serão lançadas ao mar. “Vamos seguir essas garrafas para perceber qual é o movimento do plástico nas marés”, explica Estrela Matilde.​

“Esta actividade terá um papel muito importante”, sustenta a directora da Fundação Príncipe. “A nível de dados, a nossa recolha não será muito exaustiva, porque só vamos fazer isto com cinco garrafas. Mas isto vai ser uma ferramenta de comunicação incrível. Se mandarmos garrafas de determinados sítios e comprovarmos que o plástico vem para cá, conseguiremos, a nível político, promover um engajamento muito grande e abrir um diálogo para, em conjunto, encontrarmos soluções.”

Por falar em soluções, a ONG pretende também continuar a desenvolver “novas alternativas de renda”. “Queremos criar mais dois negócios focados na reutilização dos lixos”, adianta Estrela, lembrando que a Fundação Príncipe já tem um historial de relevo no que diz respeito ao reaproveitamento do plástico.

A ONG apoia a Cooperativa de Valorização de Resíduos, um grupo criado por dez mulheres da comunidade local que faz e comercializa jóias artesanais a partir de garrafas de vidro (essa iniciativa venceu, em 2018, a nona edição do Terre de Femmes, prémio atribuído pela Fundação Yves Rocher que distingue projectos sustentáveis e com assinatura feminina). Há ainda um outro projecto, ao abrigo do qual “um conjunto de senhoras limpa a Praia Grande, recolhe plásticos e faz jóias e esteiras com chinelos”.

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Colar feito a partir de lixo recolhido em praia do Príncipe Vasco Pissarra
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Mulheres da região aproveitam chinelos usados (e atirados às praias) para fazer jóias e esteiras Vasco Pissarra

A comunidade do Príncipe envolve-se em todas as iniciativas desenvolvidas pela ONG. “​Somos oito mil a trabalhar em conjunto para defender uma ilha​”, diz Estrela, referindo que a sua equipa faz por “auscultar” as necessidades das pessoas e, com elas, procurar caminhos que aliem a sustentabilidade ao desenvolvimento social e económico da região.

A bióloga diz muitas vezes que quer “mudar o mundo, uma ilha de cada vez”. E acredita que, se o Príncipe conseguir mostrar que é possível mitigar a poluição, proteger a biodiversidade e, ainda, aproveitar o desperdício de forma criativa, não existem argumentos para os outros países não serem capazes de caminhar no mesmo sentido. “Sabemos que o Príncipe é uma gota no oceano, mas, por outro lado, nós também temos tanta falta de tanta coisa, estamos tão isolados do mundo... Se, com as dificuldades que temos, conseguirmos mostrar [que os projectos concebidos e apoiados pela Fundação Príncipe produzem resultados favoráveis], qualquer outra nação consegue fazer o mesmo.”