Sem vacinas nem ajuda, Coreia do Norte caminha para o desastre

Numa semana foram registadas mais de 1,7 milhões de infecções no país que diz ter passado dois anos sem qualquer caso. Kim acusa o próprio governo de “imaturidade”.

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Kim fez raras críticas ao governo norte-coreano durante uma reunião do Partido dos Trabalhadores KCNA / Reuters

O regime de Kim Jong-un gabou-se de ter conseguido manter a Coreia do Norte sem qualquer caso de covid-19 durante dois anos, enquanto o resto do mundo lutava contra surtos e investia em processos maciços de vacinação. Agora, a eclosão dos primeiros casos confirmados publicamente pode conduzir o país a um desastre apenas comparável à escassez de alimentos dos anos 1990.

Desde que o primeiro caso de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 foi publicamente reconhecido pelas autoridades norte-coreanas, na quinta-feira passada, foram registados mais de 1,7 milhões, de acordo com os números que são conhecidos. A progressão diária de infecções tem sido superior a 200 mil, embora o regime diga que mais de um milhão já recuperou entretanto. Ao todo, terão morrido 62 pessoas.

Como noutras áreas, poucos observadores externos confiam nos dados divulgados pelas autoridades estatais norte-coreanas, tanto pela permanente necessidade em ocultar falhanços como pela incapacidade técnica para realizar testes em larga escala. Desde o início da pandemia, em Março de 2020, a Coreia do Norte fez pouco mais de 64 mil testes, enquanto o vizinho do Sul contabiliza 172 milhões, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os casos que têm sido reportados na última semana cingem-se em exclusivo às pessoas que apresentam sintomas de “febre”, como tem sido descrito pelos órgãos oficiais.

O panorama “é muito mau”, diz ao Guardian o professor de Estudos Coreanos da Universidade de Londres, Owen Miller. “Eles estão a enfrentar a propagação desenfreada da [variante] Ómicron sem a protecção das vacinas, sem muita – se não, nenhuma – imunidade entre a população e sem acesso à maioria dos medicamentos que têm sido utilizados para tratar a covid-19 noutros países”, acrescenta.

A profusão de infecções pode ter um potencial devastador num país onde não há certezas quanto à taxa de vacinação, que, no limite, pode ser nula. O regime de Kim recusou o fornecimento de vacinas contra a covid-19 do programa Covax, organizado pelas Nações Unidas, bem como pela Coreia do Sul. As autoridades de Seul voltaram a contactar Pyongyang desde que os casos começaram a ser reportados para organizar algum tipo de apoio humanitário, mas não têm obtido qualquer resposta.

A gravidade da situação – agravada por problemas crónicos de produção e fornecimento de alimentos – levou Kim Jong-un a dirigir raras críticas ao governo que lidera, acusando as autoridades de “imaturidade” na forma como lidaram com a pandemia. De acordo com a agência estatal KCNA, o líder norte-coreano criticou os dirigentes presentes numa reunião da cúpula do Partido dos Trabalhadores pela “atitude não positiva, negligência e inactividade” nas primeiras fases da pandemia, numa altura em que “o tempo é vida”.

Sem querer aceitar qualquer tipo de ajuda externa, a estratégia do regime tem seguido o exemplo da China, com a aplicação de medidas de confinamento das suas principais cidades, embora sem o encerramento de locais de trabalho. Impôs-se a proibição de circulação para fora dos distritos e o Exército foi mobilizado para distribuir medicamentos e apoiar a testagem. As autoridades chinesas, que mantêm a aposta na estratégia de “zero casos”, apertaram as medidas de confinamento nas cidades mais próximas da fronteira.

O secretismo da Coreia do Norte e a recusa em aceitar ajuda internacional traz à memória o período, nos anos 1990, em que o país se viu a braços com uma grave crise alimentar em que milhões de pessoas terão morrido de subnutrição. A perda do apoio económico por parte da União Soviética, que havia colapsado pouco antes, e as falhas na gestão da política agrícola, associadas também a uma série de secas e monções, estiveram na raiz da crise.

Para esconder do mundo exterior o desastre vivido, o regime ocultou a dimensão da crise e rejeitou ajuda humanitária que implicasse a entrada de estrangeiros no país. O professor de Medicina da Universidade da Coreia em Seul, Kim Sin-gon, citado pelo Guardian, receia que um novo episódio trágico se abata sobre o vizinho do Norte: “A Coreia do Norte pode acabar por ter as piores taxas de morte e infecções da pandemia em todo o mundo dada a dimensão da sua população.”

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