Ronnie O’Sullivan, um colosso boémio a viver em agonia
Para muitos, o inglês é o melhor que alguma vez se debruçou numa mesa de snooker. A jogar pela vida e a viver pelo jogo, o seu maior adversário será sempre ele próprio. A questão no meio desta existência vertiginosa não é quanto é que Ronnie precisa do snooker, mas quanto é que o snooker precisa de Ronnie.
Ronnie O’Sullivan é magia e abismo – umas vezes de postura sóbria e imperturbável, outras com laivos de excentricidade e desvario. Com um taco na mão, e debruçado numa mesa de bilhar, faz do snooker o palco para a encarnação perfeita do epíteto de génio louco.
É filho de um inglês e de uma italiana e dessa mistura anglo-latina saiu alguém cuja imprevisibilidade e atracção pelo abismo têm feito as delícias dos tablóides desde a década de 90.
É alguém que nasceu do sexo, literal e metaforicamente, já que os pais, antes de serem presos – sim, os dois – o alimentavam com o dinheiro que faziam a gerir sex shops no Soho, em Londres.
É perfeccionista, exigente, frio e calculista, quando tem de rondar uma mesa de snooker, seja com a mão direita, a mais forte, ou a esquerda – que no caso de Ronnie não é a mão mais fraca, mas sim a segunda mais forte. Já jogou descalço e já saiu de um jogo a meio, apresentando boas explicações para os dois casos.
Mas o inglês também consegue ser emocional e imprevisível – já agrediu jornalistas e insultou adversários – além de espiritual – chegou a admitir que se interessa pelo islão, pelo cristianismo e pelo budismo, mas não foi definitivamente seduzido por nenhum deles.
A competir, existem duas versões de Ronnie: a errática e a genial. Já defrontou os melhores do mundo e foi acusado de desrespeitar adversários, mas o seu maior rival sempre foi ele próprio, arrastado pelos demónios mentais que lhe enevoam a vida e o talento para o snooker.
Deixou-se levar pelo álcool e foi apanhado pela droga, mas foi nos Narcóticos Anónimos que conheceu a mulher que lhe deu os últimos dois filhos.
No snooker, quando pensamos que ele vai, ele não vai. Quando pensamos que não volta, ele volta. Quando pensamos que o triunfo é dele, pode falhar. Quando pensamos que já não tem hipóteses, renasce e “limpa a mesa” rapidamente – daí a alcunha “Rocket”.
Este é Ronald Antonio O’Sullivan, que chegou, na semana passada, aos 46 anos, ao sétimo título mundial de snooker.
Um génio em agonia
Em entradas de dicionário que definam palavras como “enigma”, “genialidade”, “talento”, “loucura” ou “singularidade”, o nome de O’Sullivan poderia ser comum a todas elas. Mas não será justo que se trate este inglês como um produto de si próprio, já que nasceu numa família avessa à normalidade.
Na casa onde cresceu, as contas pagas pelo dinheiro de um negócio de sex shops são apenas um pormenor num contexto bem mais inquietante. O pai, Ronald, foi preso por homicídio, quando Ronnie tinha 17 anos. A mãe, Maria, foi presa por fuga ao fisco três anos depois, e deixou, durante cerca de um ano, o jovem Ronnie a cuidar da irmã de oito anos.
À data, já havia um campeão em potência. Sem apreço do pai, duro e parco em elogios, desde os dez anos que Ronnie fazia de campeonatos amadores o rascunho do que estaria por vir. Aos 16, já era jogador profissional. Por essa altura – estamos a falar de 1993 – já se tinha tornado o mais jovem de sempre a vencer um torneio a contar para o ranking.
Também por esta altura já exibia a loucura e a genialidade. Um dia, em 1995, foi alvo de uma queixa de desrespeito por parte de um adversário, Alan Robidoux, que não gostou de o ver jogar com a mão esquerda. “Claro que não o respeito, porque ele não merece respeito nenhum. Eu jogo melhor com a minha mão esquerda do que ele com a direita”, disparou Ronnie, que não é canhoto, quando confrontado com a queixa. Neste dia, se dúvidas existissem, um jovem genial e provocador, de 20 anos, apresentava-se ao mundo.
Mais tarde, no mesmo torneio, foi multado e teve uma pena suspensa por agredir o assessor de imprensa Mike Ganley numa competição. E este nome, Mike Ganley, seria, quase 20 anos depois, o foco de um tremendo plot twist. Já lá vamos.
Em 1997, Ronnie somou os 147 pontos da mesa em cinco minutos e oito segundos – com uma média de nove segundos para cada tacada, bateu um recorde que ainda hoje lhe pertence e poucos crêem que possa deixar de pertencer.
Em 1998, foi-lhe retirado o título do Irish Masters por ter acusado positivo num controlo antidoping e já aqui se previa a queda no precipício.
“Em 1998, voltei a fumar e a beber, a caminho do desastre. Eu sabia que precisava de ajuda. Era um jogador de snooker de sucesso, mas estava deprimido. Parte do meu vício é lutar pela perfeição e, porque nunca a consegui, senti constantemente uma sensação de fracasso. Foi o padrão da minha vida durante seis ou sete anos: lutar pela perfeição”, relatou o próprio na sua segunda autobiografia, Running. É lá que também explica os altos e baixos na relação com a dependência. “Estava deprimido, porque deixava a bebida e a droga, mas, em primeiro lugar, eu drogava-me e bebia porque estava deprimido. Mas percebi que mais valia estar ‘limpo’ e deprimido do que drogado e deprimido.”
Em cada tacada brilhante de Sullivan havia um Ronnie instável em agonia – com o pai, a mãe, a batalha legal pela custódia dos filhos, os vícios e a pressão de ser um génio no snooker. Ou, por vezes, tudo junto, já que os ganhos no desporto seriam essenciais para manter os filhos e, noutro prisma, eram também eles que davam ao pai, preso por homicídio, os únicos momentos de alegria.
“O meu pai costumava dizer que estar na prisão e ver-me na televisão era como eu fazer-lhe uma visita. Portanto, eu sabia que não podia desistir. Não podia privar o meu pai disso”, chegou a explicar numa entrevista ao The Sun.
Neste contexto, as flutuações desportivas e pessoais de O’Sullivan são surpresa para alguém?
“Não é um super-herói”
Durante muitos anos, a infância turbulenta e a educação errática – potenciadas pelo efeito das drogas e do álcool – fizeram Ronnie sucumbir à depressão e aos ataques de pânico que o assolavam logo pela manhã.
Hoje, a saúde mental dos atletas é uma preocupação e o pudor em assumir a fragilidade é menor (que o diga Simone Biles, o rosto mais proeminente dessa condição). Mas, no momento em que Sullivan precisou, não era assim. E ele sofreu em silêncio – até ser salvo.
No filme Inglourious Bastards, Hans Landa, um coronel nazi personificado pelo galardoado Christopher Waltz, tem dois militares dos Aliados presos à sua frente. Em vez de lhes infligir sofrimento, diz-lhes que não só se rende, como ainda os ajuda a matar Hitler, Goebbels, Göring, Bormann e todo o alto comando da SS. Os dois americanos desconfiam e dizem que é bom de mais para ser verdade, ao que Landa lhes responde: “No vosso lugar, eu provavelmente diria a mesma coisa. Mas, nas páginas da História, por vezes o destino aparece e estende-nos a sua mão.”
Serve esta história para ilustrar que Ronnie estava num poço fundo, mas que o destino lhe estendeu a mão. Curar-se do álcool, da droga e da depressão, voltando a ser campeão do mundo, seria demasiado bom para ser verdade?
Para O’Sullivan, o destino surgiu primeiro sob a forma de ironia ao ter conhecido nos Narcóticos Anónimos a mulher com quem teria o segundo e terceiro filhos – aqueles com os quais assume ter o laço mais forte nos dias de hoje.
Mas o destino também apareceu, depois, em forma de ténis, calções e ar puro. Como o próprio conta em Running, entrou numa demanda pela vida saudável e isso passava por tratar os vícios e a depressão, mas também por mudar a alimentação e, sobretudo, por adicionar exercício físico à rotina. Acordar, correr, treinar na mesa de bilhar, correr novamente, jantar e dormir cedo. Esta rotina, para muitos exagerada, acompanhou Ronnie durante vários meses na recuperação.
Há duas passagens da autobiografia que explicam essa atracção pelo exagero. “Eu posso estar totalmente ‘limpo’ durante um mês e depois ter de fumar ou beber alguma coisa. Sou um viciado em luta com o seu vício e isso nunca mudará (…). Acho difícil sair para ir beber apenas um copo. Quero sempre convidar toda a gente e fazer a melhor festa. Não quero ninguém a ir para casa. Tenho uma personalidade adictiva e levo tudo ao extremo”, escreveu sobre os momentos maus.
“Se for correr duas vezes por dia, na segunda corrida eu já vou ‘a voar': convenço-me de que sou um triatleta a caminho dos Jogos Olímpicos. Se vou jogar golfe, tenho de ir bater 400 bolas e depois ir fazer uma partida, porque é isso que o Tiger Woods faz”, escreveu também, mas sobre os momentos bons. Com Ronnie, se é para ser, é ao extremo.
“Because when it comes down to it, everyone needs something to drive them on. It’s about what’s it’s like to get the buzz – from running, from snooker, from life” [Porque, em última análise, toda a gente precisa de algo que os motive. Trata-se de tirar o melhor de tudo - da corrida, do snooker, da vida], escreveu o campeão de snooker. O que Ronnie queria dizer é que tem vivido uma existência rica, mas que teve a sorte de nela encontrar um propósito – a vida pessoal foi madrasta para ele, mas o snooker começou por salvá-lo em parte e a paixão pela corrida e pelo exercício físico fizeram o resto.
Mundiais mentalmente exigentes
Com Ronnie, o talento genial à volta da mesa de bilhar só é contrabalançado, quando a mente o obriga a falhar – e só aí Rocket mostra sinais de humanidade: afinal, falha como os demais.
Nuno Santos, comentador de snooker do Eurosport, explica ao PÚBLICO que a modalidade requer muito controlo emocional, já que “é um desporto de altíssima precisão”. “São milímetros que definem o sucesso. A técnica pode disfarçar, mas, sem esse controlo mental, não disfarça sempre”, explica.
E adianta que o mais difícil para o britânico é enfrentar os Mundiais: “Mais nenhuma prova demora 17 dias. Nesse período, temos vários estados de espírito. Nem sempre acordamos bem-dispostos – especialmente o Ronnie. Portanto, os Mundiais acabam por ser a prova mais exigente a esse nível para ele, porque requer a mente sã.”
Quando está estável, Ronnie é, portanto, quase imbatível – ele e a confiança em si próprio. No fundo, o inglês parece saber o que vale – e vale muito. Só precisa que essa noção não esteja enevoada por demónios. Nuno Santos observa que a experiência permite que O’Sullivan tenha noção do seu talento, mas também de quando ele não surge na mesa: “É o melhor jogador que já pegou num taco, mas não é um super-herói. Hoje, ele gere os jogos pelos momentos. Se não está a jogar bem, faz com que o adversário jogue mal, obrigando-o a baixar o nível – porque sabe que, de igual para igual, não perde com ninguém.”
E O’Sullivan, apesar dos problemas de confiança que muitas vezes o assolaram, tem noção disso. Em 2020, instado a comentar o valor da nova geração de jogadores de snooker, disse que “provavelmente, teria de perder um braço e uma perna para sair do top-50 do ranking”. Nesse dia, e noutros com tiradas semelhantes, O’Sullivan mostrou saber que tem nas mãos um talento raro e que os demais são apenas outros – e, por estarem abaixo dele, Ronnie sente-se no direito de os pisar de forma mordaz e até cruel. E é ténue a fronteira entre a frontalidade e a crueldade, limbo no qual Ronnie sempre apreciou caminhar desde que os tablóides começaram a dar-lhe manchetes.
Nuno Santos garante que, apesar desse lado prepotente, e até brigão, Ronnie é apreciado pelos adversários. Mas também os mais jovens? “Sobretudo os mais jovens”. “Com os adversários da velha guarda é diferente, mas os mais jovens idolatram-no. Eles cresceram a vê-lo jogar”, acrescenta.
Defrontar Ronnie é estar sempre perto da berlinda. É o adversário que pode esmagar-te, mas também o que, se perder de repente, te permite vencer o melhor de sempre. Já para quem está a assistir ver Ronnie é mais do que isso. É pagar um bilhete para ter direito a talento, mas também, com alguma sorte, a momentos imprevisíveis, como em 2015.
Lembra-se, no início do texto, da referência a Mike Ganley, assessor agredido por Ronnie em 1996? Dezanove anos depois, novamente no Mundial, Ronnie venceu Craig Steadman confortavelmente, mas o conforto foi apenas no resultado.
A meio da partida, o britânico, desconfortável com o calçado, decidiu que tinha de jogar descalço – o que quebra as regras do código de vestuário – e foi salvo precisamente por Ganley, director do torneio.
“Eu não tenho noções de moda. Tive os últimos sapatos durante dez anos e não queria livrar-me deles, mas deixei-os num hotel e perdi-os. Tive de ir comprar uns novos e comprei o par errado. Durante o jogo estavam magoar-me os pés e tive de os tirar. O Mike Ganley viu-me a jogar de meias disse-me que não podia jogar assim, mas eu não queria jogar com os meus sapatos.”
Ronnie teve, então, de perguntar à plateia se alguém lhe podia emprestar uns sapatos e quem se chegou à frente foi precisamente o homem agredido por si há 20 anos. “Perguntei ao Mike que número ele calçava e ele emprestou-me os sapatos dele, velhos e fedorentos, mas digo-vos: assentaram-me na perfeição”, contou Ronnie à BBC, depois de ter jogado os últimos três frames desse jogo com sapatos emprestados – e Ganley ficou a assistir descalço durante cerca de 45 minutos.
Histórias como esta atestam a excentricidade de Ronnie. Sob o prisma desportivo, Nuno Santos explica ao PÚBLICO o que está em causa quando se fala deste britânico. “Além da técnica, a grande virtude é a visão de jogo. Tem o cérebro formatado para o snooker. Vê muito além e, por isso, joga de forma diferente dos outros, para poder ir ao encontro do que está a ver.” “E só vai deixar de jogar quando considerar que o snooker que joga já não lhe permite competir com qualquer adversário”, acrescenta o comentador sobre um jogador que já assegurou que, quando “pousar o taco” – e garante que, se quiser, pode jogar mais uma década –, quer ajudar pessoas com as mesmas fragilidades mentais que ele.
Cerca de 14 mil caracteres depois, fica claro que Ronnie O’Sullivan foi e é muita coisa no snooker: do desinteresse pontual pelo jogo ao desrespeito por adversários, passando por agressões e suspensões por doping; tentou contrabalançar tudo isso com muitos dos melhores momentos que já foram vistos numa mesa de bilhar. Ao ultrapassar os limites – no talento e no desvario –, colocou-se a si próprio e ao snooker nas manchetes.
Parafraseando a sinopse da primeira autobiografia de O’Sullivan, a questão no meio desta existência vertiginosa não é quanto é que Ronnie precisa do snooker, mas quanto é que o snooker precisa de Ronnie.