Diploma europeu para um comércio justo não pode esquecer os direitos humanos
Regulamento europeu para travar importação de matérias-primas ligadas à desflorestação precisa de dar mais atenção aos direitos humanos, responsabilizar o sector financeiro e estreitar a definição das empresas que ficam isentas, alertam organizações não-governamentais.
A Europa quer privilegiar produtos cuja origem não esteja manchada pela desflorestação, mas o regulamento que vai colocar este desejo em prática precisa de ser melhorado em aspectos “cruciais”, avisam as organizações não-governamentais (ONG) Troca e Zero. O diploma europeu tem de dar mais atenção aos direitos humanos, responsabilizar o sector financeiro, refinar os critérios que definem quais empresas ficam isentas e, por fim, admitir que há outros ecossistemas ricos além da floresta, alertam as associações num comunicado divulgado este sábado, 14 de Maio, Dia Mundial do Comércio Justo.
O regulamento que pretende restringir o consumo de produtos associados à desflorestação é “uma proposta positiva”, mas cujo documento final corre o risco de sair “enfraquecido” das negociações em Bruxelas, afirma ao PÚBLICO Pedro Horta, membro da associação ambientalista Zero.
“Este documento aposta na transparência e tenta responsabilizar toda a cadeia de abastecimento – e nós aplaudimos isso. Mas há alguns aspectos que podem fragilizar o regulamento, abrindo caminho para emendas que colocam em risco a sua eficácia. Não estão devidamente acautelados, por exemplo, os mecanismos de recurso à justiça em caso de violação de direitos humanos”, explica Pedro Horta. Produtos que foram produzidos com recurso ao trabalho infantil ou ao desmantelamento de tribos indígenas, por exemplo, são “inaceitáveis”; as comunidades cujos direitos foram violados por infracções ao regulamento deveriam poder recorrer aos tribunais europeus para serem compensadas, defende o ambientalista.
Além dos direitos humanos, a Troca e a Zero temem que as isenções previstas para uma parte do tecido empresarial – neste caso as pequenas e médias empresas (PME) – acabem por deixar de fora as cadeias importadoras. Estas ONG consideram a definição utilizada para classificar a dimensão das empresas “excessivamente abrangente”. A Zero recorda que 99% das empresas do espaço europeu são PME e que, sob este guarda-chuva, cabem companhias com até 250 colaboradores e um volume de negócios anual de 40 milhões de euros. Outra lacuna que terá de ser “renegociada” em Bruxelas, na opinião destas associações, é a responsabilização do sector financeiro. Não havendo uma menção clara aos investidores no documento, continuará a ser possível “financiar a destruição” de florestas tropicais.
A proposta de regulamento publicada pela Comissão Europeia a 17 de Novembro de 2021 está em discussão e será levada a plenário em Setembro. O objectivo é restringir a importação de matérias-primas obtidas à custa das florestas e da degradação de habitats de espécies. A soja, a carne bovina, a madeira, o óleo de palma, o café e o cacau oriundos de zonas florestais estão contemplados no documento. Produtos derivados como couro, mobiliário e chocolate também estão no radar de Bruxelas.
Estima-se que a União Europeia (UE) é o principal bloco importador de produtos agrícolas associados à desflorestação de florestas tropicais e subtropicais em África, na América do Sul e Ásia. A China sozinha apresenta um volume de importações maior do que o da UE nesse capítulo. “Pequim não representa um bloco, mas é o maior importador mundial”, disse ao PÚBLICO Rita Raleira, da Troca, plataforma para um comércio internacional justo.
Em 2017, segundo dados da TRASE, os europeus foram responsáveis por 16% do abate de florestas motivado pelo comércio internacional – o que equivaleria, em termos de área, a 203 mil hectares de vegetação densa que desapareceram para dar lugar, no fim de uma longa cadeia, a produtos como um cappuccino ou um bife suculento. Nesse mesmo ano, Portugal foi responsável pelo abate de mais de 4500 hectares, sendo que metade desta desflorestação teve lugar em países da América do Sul, sobretudo o Brasil. Soja e milho foram os produtos com maior impacte.
Milho e borracha ficaram de fora
“O milho e a borracha já deveriam estar contemplados na primeira versão do documento e não estão”, nota Pedro Horta, que espera que haja “pressão pública” para que o regulamento seja melhorado antes de se tornar vinculativo. Rita Raleira sublinha, por sua vez, a importância de outros ecossistemas – para além das florestas – estarem mencionados no diploma europeu. “Os maiores produtores brasileiros de soja estão no cerrado, que [é o segundo maior bioma do país e] importa também proteger”, afirma a representante da plataforma Troca. Zonas húmidas, turfeiras e prados são ecossistemas igualmente ricos que foram esquecidos pelo diploma europeu.
O cerrado, também conhecido como “a savana brasileira”, tem sido cobiçado por agricultores para a monocultura da soja. Rita Raleira afirma que esta expansão agrícola está indirectamente ligada à desflorestação da Amazónia, o maior bioma brasileiro. Isto porque a “substituição de sistemas silvopastoris” do cerrado pela cultura da soja “empurra” os criadores de gado para as florestas. Esta competição por espaço destinado ao sector da agro-pecuária também “gera conflitos” e “afecta” comunidades locais, garante a plataforma Troca, mostrando não basta focar só na desflorestação, é preciso ver as associações entre os diversos elos da cadeia de produção. E, portanto, para as ONG, ecossistemas como o cerrado não podem ser esquecidos.
“Grande parte da soja e do milho que chegam a Portugal servem para alimentar o gado. Quando a carne chega ao supermercado, não está indicado que há ali escondida soja ligada à desflorestação, por exemplo. Por isso o ideal é que estes produtos nem sequer cheguem às prateleiras”, exemplifica Pedro Horta, para dar a medida da importância de regular as importações associadas à destruição ou degradação de ecossistemas.
A importação de soja do Brasil duplicou desde 2012, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística de 2022. A compra deste e de outros alimentos brasileiros permitem que entrem no mercado nacional produtos com pesticidas proibidos na Europa. Em 2019, as autoridades de Brasília aprovaram a utilização de 169 substâncias para o controlo de pestes agrícolas, 24 das quais estão interditas na União Europeia.