Pacto Ecológico Europeu pode ajudar a acabar com modelo extractivista herdado do colonialismo

Relatório analisa como nova estratégia europeia afectará as relações externas da UE e diz que “objectivo do crescimento económico às custas de outros deve ser substituído pelo conceito de colaboração”.

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Gasoduto que transporte gás natural a partir da Rússia: a Europa quer diminuir a sua dependência deste combustível Umit Bektas/Reuters

Para aplicar o Pacto Ecológico Europeu, será necessário reestruturar a economia europeia, os modos de produção e consumo. Mas ainda houve pouca reflexão sobre como esta nova estratégia afectará as relações externas da União Europeia (UE) e os fluxos comerciais com outros Estados. É esse papel que se propõe fazer um relatório elaborado por três organizações que afirma que a UE não só tem o dever de aliviar os impactos negativos de políticas como impor taxas de carbono a produtos importados, como tem uma oportunidade única de liderar na reforma do sistema global assente na exploração de recursos que herdamos da era do colonialismo.

“Será necessária uma compreensão muito mais profunda de como podemos criar economias no Hemisfério Sul que não sejam tão dependentes dos fluxos do comércio internacional para a Europa, para onde estão a enviar recursos. Queremos que os nossos parceiros no Sul Global estejam connosco nesta viagem para cumprir o Pacto Ecológico Europeu”, disse ao PÚBLICO Sandrine Dixson-Decléve, co-presidente do Clube de Roma, uma plataforma de líderes de diversas áreas que promovem a reflexão sobre soluções abrangentes para assuntos globais complexos e uma das autoras do relatório International Systems Change Compass – The Global Implications of Achieving the European Green Deal (Bússola para a Mudança dos Sistemas Internacionais – as Implicações Globais de Alcançar o Pacto Ecológico Europeu).

Além do Clube de Roma, o relatório foi elaborado pelo Open Society European Policy Institute e a empresa SYSTEMIQ. Trata-se de organizações de reflexão sobre temas globais de sustentabilidade, reunindo políticos, cientistas e empreendedores para aconselhar o processo de tomada de decisões na União Europeia. O relatório é apoiado por Frans Timmermans, o comissário europeu para o Pacto Ecológico da União Europeia (ou Green Deal).

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"A Europa precisa de compreender realmente quais as coisas de que precisa de se tornar menos dependente", diz Sandrine Dixson-Decléve, uma das autoras do relatório DR

“O Pacto Ecológico Europeu é um programa para reduzir as emissões de CO2 a zero, reequilibrar a nossa relação com o ambiente, e transformar a indústria, que tem no seu âmago um projecto de justiça social e redistribuição”, escreve Timmermans. “Com metade das emissões de gases com efeito de estuda e mais de 90% das perdas de biodiversidade a resultarem da extracção e processamento de recursos naturais, é crucial avançarmos para uma economia circular”, diz ainda Timmermans. “A invasão bárbara da Ucrânia pela Rússia recordou-nos de forma gritante da relevância desta transição. Seja os combustíveis fósseis ou outros recursos naturais, temos de acabar com a nossa dependência em abastecimentos exteriores [à UE] e finitos.”

O relatório aponta precisamente pistas para a UE resolver a sua dependência de recursos naturais importados e as tensões globais em torno da sua escassez – veja-se a corrida a fontes alternativas de combustíveis fósseis por causa da guerra na Ucrânia e o embargo à Rússia, a busca de autonomia energética da UE. “Temos de encontrar um equilíbrio para chegar a uma economia europeia competitiva e próspera que não se baseie apenas no consumo”, diz Sandrine Dixson-Decléve.

Deixar o modelo colonial para trás

“Para alcançar um futuro verde e justo para todos que o Pacto Ecológico Europeu preconiza, a UE deve trabalhar para que aconteçam mudanças no sistema de relações internacionais e usar isto como uma oportunidade para mostrar uma liderança transformativa”, diz o relatório. “O objectivo do crescimento económico às custas de outros deve ser substituído pelo conceito de colaboração”, acrescenta. O documento diz mesmo que se a UE pretende incentivar o desenvolvimento sustentável em termos globais, tem de reconhecer que “manter a competitividade da Europa” e “garantir uma transição justa global” são termos contraditórios.

Mas estarão os governos europeus prontos para fazer este negócio? “Acho que alguns Estados-membros [da UE] estão prontos a pensar sobre alguns dos impactos fundamentais em termos de sustentabilidade no resto do mundo, através da sua política de negócios estrangeiros, e até algumas das negociações mais fundamentais, por exemplo as negociações sobre o clima. Mas não tenho a certeza de que compreendam realmente como fazer a troca entre a competitividade e trazer outros países exteriores à Europa numa viagem que os inclua no Pacto Ecológico Europeu”, responde Sandrine Dixson-Decléve, que também faz parte do conselho geral e de supervisão da EDP em Portugal.

“Especialmente agora, que estamos num período de crise, quando as pessoas estão a pensar na guerra, e estamos a sair da covid-19, é difícil compreender que a melhor forma de avançar é fazer um planeamento a longo prazo, porque o que estamos a fazer agora é simplesmente a reagir. O que queremos com este relatório é dizer que se continuarmos apenas a reagir, então não vamos construir as relações de que precisamos com o resto do mundo”, conclui Dixson-Decléve.

Para haver uma real mudança, há que fazer mais do que reduzir os impactos negativos do modelo económico actual: “É preciso reformar o sistema de governança global baseado na exploração de recursos, que foi construído para perpetuar as dinâmicas de poder e padrões de consumo desiguais. (…) Isto exige reformar as relações imperialistas baseadas na exploração de recursos naturais e ultrapassar dependências históricas – e, em vez disso, construir relações com base na confiança”, preconiza o documento.

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Trabalhador numa fundição chinesa derrete o mineral lantânio, uma das terra raras, matérias-primas das quais a Europa depende da importação REUTERS/David Gray

“Precisamos de rectificar o facto de termos desenvolvido estas relações perversas devido à nossa dependência dos recursos naturais e ao nosso passado colonial”, diz Sandrine Dixson-Decléve. “A Europa precisa de compreender realmente quais as coisas de que precisa de se tornar menos dependente – dependências como a da importação de gás natural da Rússia, e de alguns tipos de alimentos, matérias-primas e produtos que, por exemplo, contribuem para a desflorestação.”

A UE tem de estar alerta para não repetir o mesmo padrão de dependência em relação a matérias-primas que serão essenciais para a transição energética para usar na tecnologia de energias renováveis ou nos carros eléctricos, por exemplo. Estão neste caso metais do grupo das terras raras, dos quais a China monopoliza 80% da produção global e outros como o cobalto (grande parte do qual é extraído na República Democrática do Congo), cobre, níquel, lítio, manganês, salienta o relatório.

A Europa tem de pensar mais em encurtar cadeias de abastecimento, por exemplo de alimentos, e reduzir a procura, incentivando uma economia circular. “Por exemplo, a solução mais apropriada para a actual falta de semicondutores na produção de automóveis é avançar com a partilha de carros – em vez de se insistir na propriedade individual dos veículos – com um sistema de mobilidade integrado, combinado com um padrão de trabalho que reduza a necessidade de fazer viagens”, sugere o relatório.

Não prejudicar outros países

Mas localizar a economia tem implicações. “Temos de nos assegurar de que não vamos penalizar o resto do mundo e, em vez disso, permitirmos a outros países prosperarem também”, sintetiza Sandrine Dixson-Decléve.

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Fábrica de roupa no Bangladesh: indústria têxtil representa 90% de todo o comércio externo do país, e 56% do total destina-se ao consumo da UE REUTERS/Andrew Biraj

“Damos diferentes exemplos de como podemos atingir isso no relatório. Isto quer dizer que temos de ter muito cuidado quando falamos em criar impostos de carbono pagos na fronteira [Mecanismo de Ajustamento das Emissões de Carbono nas Fronteiras, sugerido pela Comissão Europeia, que pretende criar uma taxa sobre o carbono inerente às importações de alguns bens provenientes de fora da UE] para avaliar o impacto que isto terá em países terceiros”, sugere Dixson-Decléve.

Há nações que dedicam quase toda a sua economia a servir os padrões de consumo dos países de altos rendimentos, como os da União Europeia, e podem sofrer com medidas como esta. Por exemplo, a indústria têxtil do Bangladesh representa 90% de todo o comércio externo do país, e 56% do total destina-se ao consumo da UE. “Sabemos que temos de mudar completamente a forma como está estruturada a nossa economia para aplicar realmente o Pacto Ecológico Europeu e garantir que tornamos as nossas economias mais resilientes. É preciso muita mitigação no lado da procura”, diz Sandrine Dixson-Decléve.

“Temos de resolver a divisão entre países de altos rendimentos que consomem em demasia e economias de baixos rendimentos que consomem menos do que deviam, para tentar atingir uma transição justa e eficaz, que nos conduza à meta de zero de emissões de dióxido de carbono em termos líquidos [em que tanto dióxido de carbono é retirado da atmosfera como aquele é emitido]. Mas temos de alargar o conceito de zero em termos líquidos à perda de biodiversidade, atingir o zero na desigualdade e na pobreza”, vaticina Dixson-Decléve.