Jane Davidson: “Os galeses podem pedir contas ao governo se este não agir para garantir o seu futuro e o dos seus filhos”
Ex-ministra do País de Gales explica como esta nação do Reino Unido deu um passo revolucionário, ao aprovar uma Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. “É a única legislação no mundo que determina que sejam cumpridos os objectivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas”, diz.
Quando foi ministra do Ambiente do País de Gales (2007-2011), num governo do Partido Trabalhista, Jane Davidson percebeu que, para fazer a diferença, tinha de fazer com que as coisas acontecessem de verdade, não bastava fazer política como de costume. “Decidi que tinha o dever de fazer com que o desenvolvimento fosse de facto sustentável”, contou-nos, numa passagem por Lisboa, para participar numa conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, com a qual colabora num projecto sobre justiça intergeracional.
Porque a ideia diferenciadora de Jane Davidson foi lançar as sementes para uma nova legislação, que acabou por ser aprovada pelo parlamento autonómico galês em 2015, que muda tanto a forma de pensar como de funcionar do governo, envolvendo os cidadãos nas decisões que terão impacto não só durante as suas vidas como nas vidas dos seus filhos: a Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. Ela conta como foi num livro, com o título #Futuregen: Lessons from a Small Country.
A aplicação da lei está a dar os primeiros passos, e a ter os primeiros resultados, e a suscitar o interesse de vários outros países – e até das Nações Unidas.
O que é a Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras do País de Gales?
Quando o País de Gales teve o seu primeiro governo autónomo [após o referendo de 1997], foi-lhe dado o dever de promover o desenvolvimento sustentável em tudo o que fizesse. Quando me tornei ministra do Ambiente [a partir de 2007 e até 2011], rapidamente se tornou claro que o dever de promover não é igual ao dever de fazer com que as coisas aconteçam de verdade. Decidi que tinha o dever de fazer com que o desenvolvimento fosse de facto sustentável.
A herança que deixei foi uma lei que garante que é salvaguardado o desenvolvimento sustentável em tudo o que o governo faz, chamada Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. Foi aprovada em 2015, e é a única legislação no mundo, tanto quanto sabemos, que determina que sejam cumpridos os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. No País de Gales pusemos isso em letra de lei.
A lei contém sete objectivos [um País de Gales próspero, resiliente, mais saudável, mais igualitário, de comunidades coesas, com uma cultura vibrante e onde a língua galesa prospera e que assuma responsabilidades globais] que correspondem aos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Todos os serviços públicos têm de agir para criar prosperidade com baixas emissões de dióxido de carbono, lutar contra as alterações climáticas, melhorar a saúde, melhorar a igualdade, contribuir para a igualdade global.
Mas têm de o fazer seguindo cinco regras de funcionamento: terão de demonstrar que pensam a longo prazo; que pensam de forma preventiva; têm de colaborar com outros; têm de envolver as pessoas sobre as quais estão a ser tomadas decisões; e têm de integrar os resultados das suas decisões.
A legislação contém aquilo que queremos que seja conseguido e a forma como podemos alcançá-lo. E o que é interessante é que todas as organizações públicas no País de Gales, incluindo o governo, tenham de prestar contas das suas actividades, têm de dar provas da forma como funcionam e do que estão a fazer, perante o Tribunal de Contas, perante um comissário independente para as futuras gerações e, se necessário, perante um tribunal. É este processo que se está a tornar mais interessante para outros países.
Foi por isso que a Fundação Gulbenkian se interessou?
Tive o prazer de ser convidada para vir a Lisboa para participar numa conferência organizada pela Fundação sobre justiça inter-geracional e sobre como é possível avaliar a tomada de decisões de uma forma mais justa, no quadro de um projecto de vários anos sobre justiça entre gerações, de cujo conselho consultivo faço parte. Pediram-me para vir contar a história de como promovemos esta lei no País de Gales, e quais os efeitos que está a ter na população.
Então como é que funciona, na prática, a lei galesa? Em cada decisão que o governo toma, tem de provar o seu compromisso com as gerações futuras?
Muitas vezes uma decisão tomada por um governo parece ser boa. Mas pode ser necessário reagir a algo e tomar outra decisão e, de repente, todas essas decisões acabam por ser más para o ambiente. Claro que isto aconteceu milhões de vezes. Embora ainda tenham decorrido poucos anos, o que a lei está a fazer é a provocar mudanças no processo de tomada de decisões no País de Gales. Hoje todos os países têm de se esforçar muito para manter o aquecimento global abaixo de 1,5 graus Celsius, e é muito importante que os governos mudem a forma como tomam decisões.
Durante os primeiros três anos após a aprovação da lei, os organismos públicos estiveram sobretudo a elaborar planos detalhados das suas principais decisões. Agora estamos a começar a aplicar a legislação.
Posso dar um exemplo de decisões que foram tomadas: estão a ser analisados todos os projectos para a construção de novas estradas, para ter a certeza de que são necessárias, e a verificar se as necessidades não seriam satisfeitas por melhores redes de transportes públicos. Um projecto de construção de uma nova auto-estrada que estava na calha já há 25 anos simplesmente não vai acontecer, por causa desta legislação, porque uma das áreas que afectaria é um sítio Natura 2000 muito importante.
Outro exemplo é que a gestão de transportes na capital do País de Gales está a ser feita pelo Departamento de Saúde e não pelo Departamento de Transportes. Avaliou-se que uma das coisas muito importantes é a qualidade do ar, e que se queremos que ninguém morra com doenças relacionadas com a má qualidade do ar, temos de a melhorar no centro das cidades. Por isso é o sector da saúde a liderar as decisões sobre transportes.
Estão a tentar envolver mais a sociedade no processo de tomada de decisões?
Absolutamente. Isto tem muito que ver com a sociedade sentir que tem poder para fazer frente ao governo quando está a tomar decisões que não são boas para o presente ou para o nosso futuro a longo prazo.
Foram criados mecanismos para envolver mais os jovens no processo de tomada de decisões. Por exemplo, agora é permitido votar a partir dos 16 anos para o parlamento galês e foi criado um parlamento da juventude.
Há um princípio que se chama definição de sustentabilidade de Bruntland [segundo o relatório coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, em 1987], adoptado pelas Nações Unidas e por todos os Estados-membros da ONU quando se comprometem em trabalhar para alcançar os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030. Define o desenvolvimento sustentável como desenvolvimento que garante as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades. Temos de avaliar o impacto que terão nas gerações futuras as decisões que tomamos agora.
Se pensarmos em tomar decisões de acordo com este princípio, então temos de evitar tanto quanto possível a extracção e uso de combustíveis fósseis, por exemplo. Esses princípios estão definidos na Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. Por exemplo, a palavra “crescimento” nunca aparece na definição de prosperidade. Se andarmos sempre atrás do crescimento, isso significa que vivemos para além dos nossos limites ambientais. O princípio orientador desta lei é conseguir viver sem ultrapassar os nossos limites. Por isso fala numa “sociedade inovadora, produtiva e de baixo carbono, que reconhece os limites do ambiente global e por isso usa os recursos de forma eficiente e proporcional, incluindo agir contra as alterações climáticas”.
A legislação é muito clara quanto à necessidade de lutar contra as alterações climáticas, mas também sobre ter uma população bem formada, numa economia que gera riqueza e cria empregos, trabalho decente. Cada um destes termos tem um significado na lei: “trabalho decente” é trabalho que é remunerado de forma justa, por exemplo.
A lei procura conhecer os anseios das pessoas?
Quando era ministra, consultámos milhares de pessoas em 2009 para determinar o que é que pensavam ser um País de Gales sustentável. E o que é interessante é que não eram coisas inacessíveis. As pessoas queriam viver em comunidades bonitas, viáveis, seguras e com boas ligações. Não é pedir muito. Mas a maioria dos governos não consegue garantir isto. De certa forma, a lei pretende dar resposta ao tipo de comunidade que as pessoas querem.
Por exemplo, como é que se cria uma comunidade com boas ligações? Com uma boa rede de transportes públicos, mas também com uma boa ligação à Internet. Para ser uma comunidade viável, as pessoas têm de poder comprar as coisas de que precisam perto da sua casa.
Há agora projectos muito interessantes em algumas comunidades no País de Gales que tinham sido muito deixadas para trás, por causa da sua localização – em vales longos e estreitos, longe dos centros industriais. As povoações estão a tentar assumir o controlo dos terrenos circundantes em regime perpétuo, ao abrigo da Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras. São comunidades que votaram pelo “Brexit”, porque sentem que durante muitas décadas aquilo que o Governo fez para as tentar ajudar não funcionou, portanto acreditaram na narrativa de que era um problema europeu. É entusiasmante ver algumas destas comunidades a usar esta lei para tentar construir um futuro diferente, em vez de ser o governo a dizer-lhes o que devem fazer.
O País de Gales é muito interessante como modelo, porque foi provavelmente a primeira nação industrializada; foi o local que forneceu o carvão que alimentou o princípio da Revolução Industrial. Agora está a tentar tornar-se uma nação “verde”, foi o primeiro governo no Reino Unido a declarar a emergência climática, e está a esforçar-se para que todos os serviços públicos atinjam a neutralidade de carbono até 2030. O País de Gales está a atribuir-se tarefas difíceis a si próprio, compromissos que terá de cumprir. Mas os cidadãos do País de Gales podem agora usar esta lei para dizer ao governo “bem, disseram que iam fazer isto, agora vamos cobrar-vos”.
Os partidos políticos no País de Gales apoiam todos os princípios da Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras?
A maioria dos partidos sim, não todos. O partido do Governo do Reino Unido [Partido Conservador], não. Mas a lei tem o apoio de um largo espectro partidário, três dos principais partidos no País de Gales apoiaram fortemente este projecto, por isso foi aprovada facilmente. Não é preciso que todos os partidos apoiem as políticas, mas convém que se tenha partidos suficientes do seu lado. Dessa forma, mesmo que haja uma mudança de governo, não há uma vontade imediata de alterar as políticas.
Agora, outras partes do Reino Unido, e outros países, estão a tentar fazer legislação semelhante.
Que outros países estão a inspirar-se no País de Gales?
As Nações Unidas querem usar o modelo galês para encorajar todos os Estados-membros a agir de forma semelhante. Outras partes do Reino Unido estão a tentar fazer legislação semelhante: a Escócia deve aprovar uma lei ainda este ano, a Irlanda do Norte está agora a iniciar o processo para criar a sua própria Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras.
Alguns estados da Austrália estão interessados, bem como algumas províncias do Canadá e a Islândia. A Nova Zelândia fez um orçamento do bem-estar pela primeira vez e usou outra legislação para apoiar os direitos ambientais do rio Whanganui [relacionado com o povo maori]. Há neste momento muitos países a tentarem [fazer alguma coisa], nos seus próprios contextos culturais. Quando as pessoas sentem que alguma coisa está correcta, espalha-se muito rapidamente.
Acha que este tipo de legislação pode avançar mais facilmente a um nível subnacional?
Sim, é uma questão muito importante. O livro que escrevi chama-se Lessons from a Small Country [Lições de um Pequeno País]. Acho que há algo ao nível subnacional – ou sub-Estado-membro, porque o País de Gales considera-se uma nação, não posso dizer subnacional – que permite maior flexibilidade.
Uma boa maneira de descrever Gales é que tem três milhões de pessoas, dez milhões de ovelhas. Mas isto quer dizer que as pessoas se conhecem umas às outras e que facilmente se consegue falar com as pessoas fundamentais. Temos 22 autoridades locais, o que quer dizer que podemos pôr os responsáveis todos pelos serviços comunitários numa única sala. Todas estas coisas tornam fácil a comunicação, e quando vêm pessoas de Inglaterra, surpreendem-se sempre com a facilidade de acesso que as organizações têm para falar com ministros no País de Gales, por exemplo. Tudo isto ajuda.
Pode falar um bocadinho acerca do seu livro, sobre o que é?
Chama-se #FutureGen – Lessons from a Small Country. Como fui a pessoa que propôs esta legislação e a inseri no programa do Partido Trabalhista, uma editora norte-americana especializada em sustentabilidade pediu-me para escrever a história. O livro saiu em 2020. O que faz é analisar todos os catalisadores que nos levaram a tomar a decisão de propor esta legislação.
Se não encararmos como um dever fazer com que as coisas aconteçam mesmo na luta contra as alterações climáticas, para melhorar a sociedade, agir de forma sustentável no interesse da população actual e futura, então estamos só a fazer política. Ao fazer uma lei no País de Gales, a preocupação com o bem-estar das gerações futuras tornou-se muito mais duradoura. Com uma lei, as pessoas podem responsabilizar o governo e todos os serviços públicos de uma forma que não seria possível se tudo não passasse de política. Os habitantes do País de Gales podem pedir contas ao governo se este não fizer as coisas que garantam o seu futuro e o futuro dos seus filhos.