A burocracia estrangula os sistemas de transportes? Claro que sim
Entre o planeamento e a execução dos projectos de mobilidade demora-se tanto tempo que a realidade a que se procura responder muda de forma estrutural. Pior ainda é quando nem se consegue fechar o próprio planeamento. A culpa é da burocracia administrativa ...e da burocracia política.
O concurso para as concessões rodoviárias na Área Metropolitana do Porto (AMP) foi lançado em 2020 e, aparentemente, está parado há dois anos, sem que se vislumbre um resultado.
É um concurso bem feito, planeado por quem tem um interesse mais directo (a AMP e não o Estado central), dividido em cinco lotes para estimular a concorrência entre operadores, mas depois não avança.
“A forma como se operacionaliza este concurso esbarra num processo burocrático, que dura há dois anos e que quando tiver um desfecho, o contexto já é completamente diferente pois os padrões de mobilidade estudados mudaram. Houve a covid, há uma guerra, a procura na região do Porto caiu 25% e, portanto, estamos agora a fechar um concurso para uma rede que no caderno de encargos é completamente desfasada da rede actual”. Carlos Oliveira Cruz, professor no Técnico, responde com este exemplo à pergunta sobre se a burocracia estrangula o sistema de transportes em Portugal.
“Este é um dos problemas dos transportes em Portugal. Entre o planeamento e a operação o tempo que decorre é tão grande, as amarras do ponto de vista burocrático são tão grandes, que inviabilizam a capacidade de resposta aos problemas que se procuram resolver”.
A questão agrava-se numa escala mais macro-económica em relação aos sistemas aeroportuário e ferroviário onde, nestes casos, o país nem sequer consegue encerrar os ciclos de planeamento. Veja-se a ligação ferroviária Lisboa – Porto e as tergiversações em torno da modernização da linha do Norte versus construção de uma linha de alta velocidade. Ou a decisão para a construção do novo aeroporto de Lisboa.
No primeiro caso todos os governos desde há 30 anos estão de acordo em que é necessário reduzir o tempo de percurso entre Lisboa e o Porto abaixo das duas horas e 30 minutos. Foi decidida a modernização da linha do Norte em 1988, as obras começaram na década de 90 e ainda hoje não estão concluídas.
Pelo meio foram-se fazendo alterações ao projecto e entrou na equação a linha de alta velocidade, a qual também teve abordagens diferentes em função dos governos. A modernização da linha do Norte continuou aos soluços, com avanços e recuos porque agora viria aí o TGV que a tornaria desnecessária. Mas também o próprio projecto da alta velocidade tinha avanços e recuos, consoante os governos e não só – por vezes, dentro do mesmo governo, bastava mudar o ministro da tutela e o projecto passava a ser outro. Hoje nem a linha do Norte está ainda modernizada nem há um quilómetro de via-férrea de alta velocidade.
Carlos Oliveira e Cruz chama a isto a burocracia política por oposição à burocracia administrativa (se bem que ambas se complementam nos atrasos dos projectos). “A burocracia política é a dificuldade que nós temos em Portugal de ter consensos políticos na definição das estratégias para o sector dos transportes, em vez de demagogia política”. O também coordenador do livro O Sistema de Transportes em Portugal diz que tudo seria mais fácil se houvesse um compromisso de que os grandes projectos para o sector não seriam usados como arremesso de luta partidária.
E dá o exemplo do novo aeroporto de Lisboa. Com o mesmo primeiro-ministro, José Sócrates, a decisão caiu sobre a Ota e depois sobre Alcochete, mas na altura a oposição à direita defendia a solução Portela + 1. Com Passos Coelho no governo é decidido, em coerência, o Portela + 1, mas não se passada da decisão. António Costa, pragmaticamente, dá seguimento à decisão e manda avançar com o projecto, mas depara-se com a oposição de Rui Rio pois agora o PSD defende Alcochete.
“E agora reabre-se um processo de avaliação ambiental estratégica, que fez sentido, mas que tem 15 anos de atraso. Se, com o aumento dos preços dos combustíveis, as tarifas do transporte aéreo duplicar, então tudo muda e as premissas de há 20 anos caem por terra. Se calhar, neste caso concreto, a incerteza até pode jogar a favor destes atrasos. Mas é mais um exemplo em como a burocracia estrangula o sistema. Não há muitos sectores onde estes problemas de governança sejam tão graves e tão penalizadores como nos transportes”.
Há, contudo, bons exemplos. Carlos Oliveira Cruz destaca o do Metro do Porto, no qual entre o planeamento e a execução decorreu um tempo muito curto ou, pelo menos, mais curto do que o habitual: o planeamento foi feito na década de 90, as obras começaram em 1998 e a inauguração deu-se em 2003.
“Foi dos projectos mais descentralizados que o país teve pois era controlado pelos municípios da Área Metropolitana do Porto e não pelo Estado. Se não fosse esse nível de descentralização, não teria sido tão rápido”, diz o investigador, que aponta até a pouca perenidade dos nomes do ministério com a tutela dos transportes para exemplificar a burocracia política que contamina o sector. O Ministério dos Transportes já foi Ministério das Obras Públicas, Ministério do Equipamento, agora é Ministério das Infraestruturas e no governo de Passos Coelho foi apenas Ministério da Economia (o que se compreende num período em que quase não houve investimento público).
E a burocracia administrativa?
Nas suas apresentações públicas, Carlos Fernandes, vice-presidente da IP – Infraestruturas de Portugal, faz questão de explicar as fases de um empreendimento ferroviário que demora sete anos entre o momento da decisão e a sua entrada ao serviço. O gestor conta que só a fase da concepção do projecto demora, em média, três anos e meio. Tem início com o despacho das Finanças que autoriza a despesa plurianual, seguem-se 10 meses de concurso público para escolher o projectista, mais seis meses para o estudo prévio mais o Estudo de Impacto Ambiental, mais seis meses para a Avaliação de Impacte Ambiental, oito meses para o projecto de execução e ainda mais três para obter o Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução. Segue-se mais uma (normalmente longa) espera para obter a autorização das Finanças para a despesa plurianual e depois um concurso público para a escolha do empreiteiro que nunca dura menos de um ano. Sem se ter fixado um único quilómetro de carril, a parte imaterial do projecto já durou, pelo menos, cinco anos. Se tudo tiver corrido bem.
Mas normalmente não corre. Há concursos que se atrasam ou ficam desertos, concorrentes que protestam, projectos mal executados, cadernos de encargos com erros, valores base demasiado baixos.
E há também a IP a atrasar – voluntária ou involuntariamente – os processos. No Ferrovia 2020, nos projectos para o Algarve, Oeste e Douro, a empresa não seguiu aqueles procedimentos e em vez de encurtar o tempo dos projectos, aumentou-o. Em vez de incluir a análise de impacto ambiental no estudo prévio, para que as exigências da APA já fossem incluídas no projecto de execução, a empresa esperou pela conclusão deste para depois pedir a dispensa do estudo de impacto ambiental. Resultado: a APA não aceitou os pedidos de dispensa e os projectos atrasaram-se mais de um ano.
O Código da Contratação Pública é, neste aspecto, inimigo da rapidez dos processos. É aplicado a todas as fases de um empreendimento, desde o projecto, à contratação e à construção e não há gestor público que não se queixe dele. Quem tem experiência do privado, onde a flexibilidade é maior, dificilmente se adapta aos rigorosos procedimentos da contratação pública, como aconteceu com o último presidente da CP, Nuno Freitas, que acabou por se demitir antes do fim do mandato.
“Nós precisamos de um código de contratação pública que salvaguarde a transparência e a imparcialidade, que são fundamentais, mas este vai tão longe que penaliza demasiado a celeridade”, diz Carlos Oliveira Cruz. “Veja-se o caso da linha do Oeste, onde o empreiteiro suspendeu os trabalhos e o Código da Contratação Pública não dá flexibilidade para resolver questões pontuais. O Código não gere a incerteza e precisávamos de um que possuísse a flexibilidade suficiente para que os processos pudessem ser concluídos. Não adianta haver transparência e imparcialidade se não houver conclusão.”
A burocracia asfixia o sistema não apenas na parte dos investimentos, mas também na própria operação. Sectores onde a presença do Estado é menor funcionam melhor porque os principais actores não estão sujeitos às rígidas regras da contratação. Carlos Oliveira Cruz dá o exemplo do sector portuário. “Os portos portugueses são muito eficientes, mesmo ao nível internacional e isso acontece, também, porque são geridos por privados. Onde eles são menos eficientes é na parte que depende do Estado, nas alfândegas e nas questões administrativas”.
Outro exemplo de burocracia administrativa são os aeroportos. Um dos principais constrangimentos do aeroporto de Lisboa é o SEF onde passageiros fora do espaço Schengen se acumulam em filas de espera para poder passar o controlo de fronteiras. Associações de turismo queixam-se que os seus clientes chegam a demorar tanto tempo na fila do SEF como durante o voo.
Há mais: os principais players da logística em Portugal são privados. Mas a decisão de encerrar o terminal da Bobadela e a falta de decisão do Estado sobre a localização do terminal que o vai substituir condiciona a actividade dos agentes económicos ligados a este sector.
Na ferrovia é conhecido o exemplo das carruagens espanholas compradas em segunda mão pela CP e que a empresa não começou logo a recuperar porque a tutela que autorizou a sua compra não autorizou depois a compra de componentes para essa recuperação.
Mais: quando chegaram a Portugal grande parte daquele material estava ainda em circulação uns meses antes. Os ferroviários, surpreendidos com o seu bom estado, diziam que estavam prontas a fazer o Intercidades no dia seguinte.
Mas depois de um processo de modernização destinado a dar-lhes mais 20 anos de vida, as carruagens estão há um ano à espera dos certificados para poderem circular.
“Como é possível que o processo de certificação seja mais moroso que o processo de recuperação das carruagens?”, questiona-se Carlos Oliveira Cruz.
Porque a CP tardou em apresentar a documentação completa junto do balcão único da ERA (Agência Ferroviária da União Europeia) e porque o IMT tarda em concluir o processo. Questionado pelo PÚBLICO, este organismo explica que “o processo de autorização de veículos é complexo e rigoroso, envolvendo a verificação de requisitos estabelecidos por um vasto conjunto de normas técnicas e envolvendo várias entidades além do requerente, nomeadamente os organismos independentes de verificação das regras europeias e nacionais”.
Na ferrovia as empresas não podem introduzir equipamentos ao serviço sem que estes sejam verificados por uma entidade pública, à semelhança do que acontece, por exemplo, na aviação ou no sector farmacêutico, por serem produtos e equipamentos que podem ser críticos para a segurança das populações. Trata-se, afinal, de “garantir que o material é seguro para os passageiros e mercadorias”, explica o IMT.
Enquanto isso há seis carruagens praticamente novas à espera de poder entrar em circulação. Perante a pergunta do PÚBLICO “quando se prevê que o referido material esteja certificado”, a entidade responsável respondeu burocraticamente: “o IMT irá concluir o processo dentro dos prazos previstos na legislação”.