Nos Estados Unidos, uma médica corre o país a fazer abortos: “As mulheres são muito fortes”

A médica Shelly Tien está entre os cerca de 50 médicos que viajam pelos estados dos EUA para fazer abortos em locais com acesso limitado a este procedimento. Passa horas em aeroportos para ajudar mulheres a terminar gravidezes que não o poderiam fazer de outra forma, pois nenhum médico local é capaz ou está disposto a fazê-lo.

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A médica Shelly Tien viaja pelos EUA para realizar abortos Reuters/EVELYN HOCKSTEIN
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A médica Shelly Tien viaja pelos EUA para realizar abortos Reuters/EVELYN HOCKSTEIN
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A médica Shelly Tien viaja pelos EUA para realizar abortos Reuters/EVELYN HOCKSTEIN

Dentro da clínica Planned Parenthood de Birmingham, no Alabama, nos Estados Unidos, um espaço sossegado com poucas janelas e fotografias da cidade a forrar as paredes, uma mulher tinha a mão na barriga, enquanto a médica Shelly Tien procedia a um aborto cirúrgico.

Tien, de 40 anos, voara para Birmingham no dia anterior, e regressaria a casa em Jacksonville, Florida, nessa noite. Uma semana antes, fizera abortos numa clínica em Oklahoma. Está entre os cerca de 50 médicos que, segundo a Federação Nacional do Aborto dos EUA, viajam pelos estados para fazer abortos em locais com acesso limitado a este procedimento.

“Está a ir muito bem”, disse Tien à mulher durante o exame. “Tão forte. Respire. Está a ir muito bem.”

Shelly Tien Reuters/EVELYN HOCKSTEIN
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Especialista em medicina materno-fetal, Tien passa horas em aeroportos, a conduzir carros alugados e a fazer chamadas de hotéis por FaceTime para o namorado, para ajudar mulheres a terminar gravidezes que não o poderiam fazer de outra forma, pois nenhum médico local é capaz ou está disposto a fazê-lo.

Tien permitiu que a Reuters a acompanhasse em Março, enquanto viajava da Florida para o Alabama para fazer abortos, e no Oklahoma, em Dezembro. A janela para tais viagens pode estar a fechar-se. A maioria conservadora do Supremo Tribunal já manifestou vontade de revogar ou enfraquecer a decisão Roe versus Wade de 1973 que legalizou o aborto a nível nacional.

Num caso no Mississipi, esta Primavera, adiantando-se a essa decisão, os legisladores conservadores aprovaram uma série de novas restrições ao aborto. Aproximadamente duas dúzias de estados — incluindo Oklahoma e Alabama — têm leis que os posicionam para limitar ainda mais o acesso ao aborto, caso o direito constitucional seja anulado.

Enquanto assistia ao declínio do acesso ao aborto nos últimos anos, Tien decidiu ajudar a preencher esta lacuna.

Em Fevereiro de 2021, começou a voar da sua clínica no Illinois para a cidade de Oklahoma para realizar abortos na Trust Women. No mês seguinte, mudou-se para a Florida com o cão para aceitar um trabalho a tempo inteiro na Planned Parenthood, em Jacksonville. Em Dezembro, acrescentou Birmingham à lista.

Não quer especular sobre como seria a sua vida num mundo pós-caso Roe versus Wade. Preocupa-a que algumas mulheres recorram a meios pouco seguros para acabar com a gravidez.

“O meu plano é fazer sempre abortos”, disse numa entrevista. “Fá-lo-ei legalmente, e respeitarei quaisquer restrições e regulamentos estatais que estejam em vigor. Não sei bem como vai prosseguir.”

Estigma e segurança

Clínicas de aborto em pelo menos seis estados — incluindo Oklahoma e Alabama, onde Tien trabalha — dependem inteiramente de médicos de fora para os abortos. As preocupações com a segurança e o estigma em torno do aborto fazem com que muitos médicos locais em estados conservadores não realizem este procedimento, disse Zack Gingrich-Gaylord, porta-voz da Trust Women de Oklahoma.

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Pode levar meses até que os médicos tenham as autorizações necessárias para trabalhar em qualquer estado. Pode ser ainda mais demorado, se o estado tiver leis que exijam que estes médicos cumpram requisitos específicos para admissão nos hospitais locais.

Apenas dois estados — Dakota do Norte e Missouri — exigem requisitos específicos para admissão nos hospitais. Outros foram bloqueados pelos tribunais, incluindo leis semelhantes no Texas e Louisiana, abolidas pelo Supremo Tribunal em 2016 e 2020, respectivamente.

Os opositores ao aborto dizem que tais regras protegem as mulheres que podem ter complicações perigosas após um aborto e precisar de cuidados nesse contexto. Em 2019, foram realizados cerca de 630 mil abortos nos Estados Unidos, como indicam os dados mais recentes do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, CDC. É mais do que um aborto por minuto.

Se o médico que realizou o procedimento deixar o estado pouco tempo depois, “a continuidade dos cuidados e a capacidade de ter uma supervisão médica que se prolongue por mais de uma hora” torna-se uma preocupação, explicou Sue Swayze Liebel, directora de políticas estatais do grupo antiaborto Susan B. Anthony List.

Os defensores do aborto apontam para estudos que mostram que as complicações do aborto são extremamente raras, e que é muito mais seguro do que o parto. As clínicas também têm protocolos de acompanhamento para casos de emergência. O CDC sinalizou duas mortes relacionadas com o aborto em 2018 no seu relatório anual mais recente.

Na clínica de Birmingham, Tien vê pacientes de todo o Alabama, bem como do Mississipi, Louisiana, Geórgia e Texas, estados que também restringem o aborto. As mulheres devem agendar as consultas para coincidir com as visitas de um dos médicos itinerantes, e também ter em conta o período de espera de 48 horas que o Alabama requer entre a consulta inicial e a consulta de aborto.

O dia de consultas de Tien em Março incluiu seis abortos cirúrgicos e 12 por medicação.

A idade das pacientes variou entre os 19 e os 36 anos. Uma mulher tinha conduzido várias horas vinda do Louisiana. Outra estava ao telefone a tentar arranjar dinheiro suficiente para pagar os medicamentos abortivos. Uma paciente que só falava castelhano falou com as enfermeiras através de uma linha telefónica com tradução.

Num gabinete, Tien sentou-se à frente de A.W., de 22 anos, uma mulher daquele estado com duas crianças pequenas, de quatro anos e oito meses.

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A.W., que pediu para usar as iniciais por questões de privacidade, disse que o homem responsável pela sua última gravidez não era financeiramente estável. Ela não lhe falou da sua decisão de fazer um aborto. “Senti que ele ia tentar fazer-me mudar de ideias”, disse ela. “Não quero mudar de ideias.”

Tien deu a A.W. um comprimido de Mifepristone para engolir. Disse-lhe para tomar mais em casa no dia seguinte para completar o aborto e avisou A.W. de que poderia sentir cólicas intensas. “As mulheres são muito fortes”, disse-lhe Tien. “As mulheres fazem isto todos os dias.”

Tien diz que tem a certeza, desde jovem, que as mulheres devem ter controlo sobre os seus corpos e gravidezes. Uma vez leu uma “frase” que resumiu a sua vocação: “Medicina = ciência + amor.”

Tien sabe que pode ser um alvo por causa do seu trabalho e toma as devidas precauções. A Planned Parenthood reembolsou-a pela instalação em casa de um sistema de segurança, depois de ter sido contratada na Florida. Tenta ter sempre um quarto do depósito do carro cheio, caso precise de fugir de alguém que a siga.

Na clínica de Oklahoma City, um segurança a tempo inteiro inspecciona as malas de todos os que entram no edifício. Em Jacksonville, Tien entra na clínica por uma porta nas traseiras, longe do grupo de manifestantes antiaborto que muitas vezes estão à entrada.

Numa visita em Março, uma mulher no exterior da clínica segurava um cartaz onde lia: “Vida, o primeiro direito inalienável.”

O desafio das viagens

À noite, a clínica em Birmingham estava vazia. Tien pegou num bagel no seu gabinete e usou o seu telefone.

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O voo para Atlanta estava atrasado, o que significa que provavelmente iria perder a ligação de regresso a Jacksonville. Ela deveria estar lá na manhã seguinte a fazer abortos, a 645 quilómetros de distância. “Qual é a forma mais rápida de voltar a Jacksonville indo de Atlanta – a conduzir ou um voo matinal?”, perguntou, numa mensagem para o namorado.

Decidiu voar. “Uma coisa para a qual não tenho resistência é conduzir.”

Tien telefonou ao gerente da clínica para lhe dizer que chegaria atrasada às consultas da manhã. Mas o voo para o seu destino acabou por chegar perto da hora marcada. Tien correu pelo aeroporto, com a sua mochila azul-turquesa a saltar sobre os ombros, e embarcou no seu voo de ligação com tempo de sobra.