O mundo lírico de Strawberry Mansion respira inconformismo

Escondido no canto dedicado ao cinema fantástico do IndieLisboa — Festival Internacional de Cinema, numa sessão única já este sábado, 30 de Abril, às 22h no Cinema Ideal, Strawberry Mansion revela-se na concretização de uma liberdade artesanal, pré-digital, num país que usa e abusa de CGI para transformar o onírico em realidade.

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Strawberry Mansion DR

São demasiados os filmes independentes americanos indicados enquanto notáveis no seu país de origem, mas que até nós, ou melhor, até à sala de cinema, nunca chegam. Casos recentes e mais notórios são o ensaio sobre amizade e como o tempo a atravessa de Dan Sallitt, Fourteen, ou o exercício mumblecore Slow Machine, de Joe Denardo e Paul Felten; ambos revisões intrigantes do estudo de personagem que ficaram, desastrosamente, por distribuir. Seguindo este mesmo traço, Strawberry Mansion, a segunda longa-metragem de uma das caras do cinema mumblecore pelo rio East fora, e criador da plataforma de streaming No Budge, Kentucker Audley, e de Albert Birney, representa o olhar do “tipo de filmes que Sundance não aceita normalmente. (…) Como filmes feitos por jovens de 25 anos que têm coisas interessantes a dizer mas não estão completamente formados para o mercado”, como dizia Audley na Brooklyn Mag em 2013. A diferença é que, em 2021, Strawberry Mansion não só teve a sua estreia mundial no festival de cinema de Sundance como tem sido abraçado um pouco pelo Ocidente fora. Depois de várias semanas em exibição nos EUA, foi do Canadá à Irlanda, aterrando agora em Portugal.

Escondido no canto dedicado ao cinema fantástico do IndieLisboa — Festival Internacional de Cinema, numa sessão única já no próximo dia 30 de Abril às 22h no Cinema Ideal, Strawberry Mansion revela-se na concretização de uma liberdade artesanal, pré-digital, num país que usa e abusa de CGI para transformar o onírico em realidade. Noutras palavras, é o equivalente à zine ou ao panfleto poético no mundo da criação artística e sua manifestação. Tendo em conta o status quo da indústria, o simples facto de nos podermos agora debruçar sobre o seu produto DIY, conduzido pelo modesto orçamento dos projectos-paixão, é meritório. Estranha é, no entanto, a sua rotulação enquanto filme que nos conduz à fantasmagoria quando o desenho que o filme adopta lhe é, precisamente, oposta. Se mais nada, este é um regressar ao início, às camadas oxigenais do amor, empatia, bondade e imaginação para combater uma ameaça que é toda ela apenas humana.

Em 2035, num futuro não muito distante e onde nada parece ser muito diferente, os sonhos da população são infectados e comandados por publicidade sem o seu consentimento, e tudo o que constitui o mundo do sonho é adquirido e tributado pelo governo federal americano. No seu cerne, está a epopeia do herói comum, um revisor fiscal de sonhos, James Prebel (Kentucker Audley), e o seu acordar para o mundo ultra-capitalista em que se encontra mergulhado. Quando se vê obrigado a visitar uma mulher idosa, uma artista engenhosa, Arabella Isadora (Penny Fuller), que não entregou os seus sonhos, Prebel perde-se dentro desta. Primeiro dentro da sua mansão rosada e dos cantos de esplendor e auto-expressão em que esta se divide. E depois dentro da jovem Bella, presa nos sonhos arquivados em incontáveis cassetes VHS. Independentemente do que a sua cobertura sobrenatural possa sugerir, a fibra óptica que percorre todo o filme resume a dificuldade de Prebel em reconhecer a realidade da irrealidade, o que é aceite enquanto uma e outra, e eventualmente a abraçar o maior medo de todos: a liberdade da mente e a experiência incorpórea, a única possível, face às frustrações da vida moderna quando espelhada na lógica (ou falta dela) dos sonhos.

Se os vários elementos de ficção científica não fossem logo tão evidentes, poder-se-ia determinar de início que Audley e Birney tinham feito um filme-parábola sobre a América atemporal de agora, onde a alimentação se baseia em batidos “com menos de 500 calorias” feitos de uma mistura de pedaços de galinha com molho e um consumo excessivo de refrigerantes, e a importância dos suportes físicos, os objectos que não só evidenciam a passagem do tempo e reacendem a memória deste como estruturam personalidade, vai sendo eliminada. Polvilhado com tons etéreos, ora pastéis ora mais saturados, revestidos pela textura esfumada das coisas instáveis, Strawberry Mansion enrola-se num desejo permanente de falar da urgência que é ver o cidadão a libertar-se do poder marionetista potenciado pelas grandes corporações. Através dos sonhos livres de Bella, uma transferência febril ocorre para a mente enclausurada de Prebel, figurando o mesmo tipo de movimento interior que afirmou o talento de OA, a série da Netflix. Mas enquanto OA se inclinava na experiência que toca na morte, Strawberry Mansion quer fugir do automatismo humano e partir para o tipo de mundo encantado onde não existe tempo ou espaço, e o acto da realidade é o da permanência nela, emocionalmente.

Conduzido pelo tom atmosférico acídico e lo-fi da fantasia do real, demonstrada no sentimento daquilo que não consegue ser empurrado para baixo e para dentro, contido e fechado à força, não sacrifica nada para enraizar uma examinação suficientemente extravagante da morfologia da presença na vida: o que significa e como conseguimos discerni-la. Mas tal não significa que puxe pelos nossos cordões mais pungentes. Muito pelo contrário, até. Não nos deixa nadar pelo filme fora. Quer que fiquemos alerta, em vez de maravilhados, para as paredes que se vão caindo dentro do protagonista no filme, mas também para a realidade vivenciada fora dele, a ocorrer enquanto a projecção ilumina a sala escura. Por essa mesma razão, é fácil contestar de que este é um filme sobre o lirismo de um mundo dobrado que respira o inconformismo que acaba a empurrar sociedades para a frente. No entrar e sair de um lado para o outro, Prebel vai notando como os dois sangram um no outro. Será que enlouqueceu? “Acho que estou a perder a cabeça. (…) Há algo que não compreendo”, diz à idosa Bella durante um jantar, ao que esta expressa alívio. Quase como se os realizadores nos estivessem a dizer que a vida só existe nas nossas tempestades, que seria o mesmo que dizer que só existem nas nossas perguntas.

E sim, um mundo inteiro, específico e desigual a qualquer outro, vive na nossa rebeldia que é o tentar compreender o estado das coisas. Tudo é o início de algo, no que toca ao que é incorpóreo. Não esquecer que há um poder impenetrável em tudo o que resiste fora do corpo, longe do objecto, porque é imortal e impossível de ser tocado pelo controlo da moralidade assim que despertado. No final, para lá de associações, símbolos, e movimentos de entrada e saída, tudo o que a universalidade dos nossos desejos sempre segredou foi a partilha. E neste caso, a partilha de sonhos eterna. Prebel deita-se nos sonhos de Bella e não quer nunca mais parar de viver com a sua memória. Sair dela seria aceitar a perda da sua humanidade, da sua liberdade de expressão. Pela estranheza do que significa sobreviver numa estrutura onde o pensamento nunca é fermentado, Audley e Birney ziguezagueiam por caminhos internos e externos, saltando por cima de oceanos e subindo aos céus, e concluem que há ainda tanto espaço por explorar...uma infinitude efervescente de caminhos abafados dentro de nós.

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