Guterres pediu retirada de civis de Mariupol, mas em vão: “Não temos cessar-fogo”
Sem um cessar-fogo, não foi aberto o corredor humanitário para retirar civis da fábrica Azovstal, em Mariupol, previsto para esta sexta-feira. O acordo que António Guterres trouxe de Moscovo falhou.
O 65.º dia de guerra na Ucrânia podia terminar com notícias melhores. Depois de infindáveis tentativas, foi programada para esta sexta-feira mais uma operação de retirada de civis presos na fábrica Azovstal, em Mariupol.
Um acordo trazido de Moscovo por António Guterres previa a abertura de um corredor humanitário destinado apenas aos civis encurralados na cidade portuária, em articulação com o Comité Internacional da Cruz Vermelha, o Ministério da Defesa russo e as autoridades ucranianas.
O secretário-geral das Nações Unidas saiu optimista da reunião com Serguei Lavrov, chefe da diplomacia russa, mas com a consciência de que a operação seria “particularmente delicada”. “Imaginem o que é um conjunto de mulheres e crianças em bunkers no escuro, desprovidos de tudo e no meio de uma guerra”, disse aos jornalistas na chegada a Kiev, "comovido com a resiliência e coragem" da Ucrânia.
Nos subterrâneos do edifício, cercados pelas tropas russas, estão ainda milhares de civis, crianças e soldados, incluindo alguns do batalhão Azov. No entanto, ainda não é na madrugada deste sábado que dormem num lugar seguro.
“Não temos um cessar-fogo”, declarou o chefe da polícia da região de Donetsk, ao Washington Post. Esta semana, bombardeamentos contra o hospital de campanha improvisado no complexo provocaram mais de 600 feridos, avançou o presidente da câmara de Mariupol. Na quarta-feira, as autoridades ainda falavam em 170 pessoas feridas.
De acordo com o autarca, Azovstal está debaixo de fogo “24 horas por dia”, num ataque “sem precedentes”. “Há muitos feridos, em condições insalubres, terríveis. Sem medicamentos. A escassez de água potável e de alimentos é catastrófica”, acrescentou. Desde o início da guerra, Mariupol, “cidade-mártir", é sucessivamente descrita como uma “catástrofe”.
“Estamos debaixo de fogo neste momento”, continuou o chefe da polícia de Donetsk, Mikhailo Vershinin, e explicou que os ucranianos estariam a ser atacados no terreno, por via aérea e naval.
Não bastassem os anteriores bombardeamentos nesta semana, a área em torno do hospital de campanha continua a ser um alvo, até no dia em que a ONU e o Governo de Kiev pediram uma nova tentativa de evacuação da fábrica. A escassez de medicamentos e material cirúrgico acentua-se de dia para dia.
Desde o início da invasão russa, já terão sido mortas mais de 20 mil pessoas só em Mariupol, segundo as contas do presidente da câmara. “Mais do que durante os dois anos de ocupação nazi durante a Segunda Guerra Mundial”, comparou.
Putin quis mostrar força e “humilhar a ONU”, mas soma perdas
No final de uma semana em que Putin relembrou o Ocidente do seu poderoso armamento nuclear, e depois de uma tentativa de “humilhar a ONU”, contrastam as notícias sobre baixas no exército do Kremlin e atrasos no avanço no território.
De acordo com uma análise do Pentágono, apesar dos progressos nas últimas semanas, a Rússia está “vários dias atrasada” na ofensiva no Donbass, por problemas de abastecimento e uma insistente resistência ucraniana. Espera-se uma guerra longa, ainda sem fim à vista.
No Nordeste da Ucrânia, em Izium, no Donbass, a Leste, e em Mariupol, a Sul, o exército de Vladimir Putin continua em combate e já tomou algumas localidades, mas está longe de um objectivo estratégico: cercar milhares de tropas ucranianas num movimento de pinça, com um ataque por duas frentes, considera um representante do Pentágono citado pelo New York Times, que falou na condição de anonimato.
Os batalhões russos, cerca de 90 neste momento, menos 30 do que no início da guerra, sofreram “significativas” perdas humanas e de equipamento bélico, como admitiu o Kremlin.
Segundo números divulgados pelas Forças Armadas ucranianas, já terão morrido 23 mil soldados de Moscovo, destruídos quase mil tanques, abatidos mais de 500 aviões, helicópteros e drones. Já a Defesa do Reino Unido, por exemplo, aponta para 15 mil soldados mortos. O número real estará entre as duas estimativas.
Desta sexta-feira ficou, ainda, um possível embargo ao petróleo russo, acordado pelos membros da União Europeia. Nova tentativa de exercer pressão sobre o Kremlin, para que termine “o absurdo” da guerra, como a descreveu António Guterres, em Kiev.