“Os mais velhos dizem que Deus tem um plano para Tuvalu”
O director de uma associação ambientalista em Tuvalu conta como a subida do mar tem alterado o quotidiano de quem reside na nação insular e de como há quem, apesar de viver em condições precárias, não queira deixar o país onde estão as suas memórias.
O trabalho de quem vive da pesca em Tuvalu costumava ser simples. Tempos houve em que havia sempre muito peixe comestível nas águas dessa nação insular. Mas a realidade actual não é essa. “Hoje em dia, um pescador demora horas a apanhar a mesma quantidade de peixe que, no passado, conseguia pescar numa questão de minutos”, conta-nos, via Zoom, Richard Gorkrun, director da Tuvalu Climate Action Network (TuCAN), associação ambientalista que tem como objectivo trabalhar rumo à adaptação de Tuvalu à crise climática.
O aquecimento do oceano Pacífico está a levar à destruição dos recifes de coral em Tuvalu, o que está a interferir com a biodiversidade das suas águas e a fazer com que alguns pescadores tenham de percorrer distâncias consideráveis para apanhar o peixe de que precisam para sobreviver. Mas o sector da pesca não é o único que está a ser afectado pela mudança do clima.
A subida do mar e a ocorrência de tempestades fortes, contextualiza Gorkrun (que, tal como cerca de 60% da população de Tuvalu, vive em Funafuti, a capital), estão quase a banalizar inundações, que, por sua vez, estão a contribuir para “a contaminação da água do subsolo”. As cheias, bem como a salinidade da água do mar, estão ainda a degradar os terrenos agrícolas — e a fazer com que um país já de si limitado em termos económicos tenha de depender cada vez mais de importações. Por estes dias, proceder-se ao cultivo da planta tradicional pulaka, por exemplo, é “extremamente difícil”.
“As cheias estão a tornar-se como que uma coisa normal para as novas gerações”, diz Gorkrun, sublinhando que há regiões em Tuvalu que ficam inundadas “mensalmente”. O responsável pela TuCAN fala ainda da construção deficiente de muitas habitações, o que aumenta a probabilidade, num futuro mais ou menos próximo, de as inundações virem a destruir as casas de muitas pessoas.
Há quem não consiga migrar. E há quem não queira
Tuvalu é uma de várias nações insulares que, devido à subida do nível do mar, correm o risco de, eventualmente, desaparecer. Segundo o relatório publicado pelo Grupo de Trabalho II do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) em Fevereiro de 2022, mais de 95% das suas infra-estruturas estão situadas em áreas costeiras cuja altitude não vai além de dez metros acima do nível do mar.
A mesma percentagem verifica-se nas Ilhas Marshall e em Kiribati. Esta última nação insular sabe quão real é o risco de desaparecimento. A maioria dos habitantes de Tebunginako, aldeia em Kiribati que está a ser engolida pelo oceano, já teve de se realojar noutras zonas do país insular.
Em Tuvalu, afirma Richard Gorkrun, as ilhotas de Kalilaia, Maika, Niuelesolo, Teafatule, Teafualoto, Teafuave, Tepukasavilivili e Vasafua já desapareceram. Não tendo números concretos, o director da TuCAN diz que há pessoas naturais da nação insular que já migraram, tornando-se “refugiados climáticos” não oficiais (legalmente, o estatuto de refugiado climático ainda não existe).
Os destinos preferenciais são a Austrália e a Nova Zelândia, países onde podem aceder a “boa educação, bons empregos e hospitais de qualidade”. Mas a migração não está ao alcance da maioria. Exige recursos financeiros que nem todos os habitantes de uma nação empobrecida têm. E há quem simplesmente não queira sair. “Os mais velhos não querem deixar Tuvalu”, diz Gorkrun. “Eles dizem que Deus sabe o que está a fazer e tem um plano para Tuvalu.”
Há, no entanto, um problema para quem decide ficar. Gorkrun assinala que o facto de a percentagem de terra arável ou habitável estar a decair está a levar a que famílias e indivíduos discutam e, nalguns casos, lutem por causa da propriedade de determinados terrenos. O pequeno atol de Funafuti está a ficar demasiado pequeno para os seus cerca de 6300 habitantes.
Mais do que “vulnerabilidade”
Para quem mora em Kiribati, onde o clima é quente e húmido, a preocupação maior prende-se com a ocorrência de secas prolongadas. Mas Simon Donner, que lecciona climatologia na Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e tem vindo a estudar a forma como as ilhas do Pacífico se têm adaptado à subida do mar, defende que há muito mais em Kiribati do que aquilo que define como uma “narrativa de vulnerabilidade”. Argumentando que os atóis e as pessoas dessa nação insular são “muito mais resilientes do que as histórias e fotografias que circulam na imprensa dão a entender”, o investigador refere que “a notícia do jornalista estrangeiro sobre pessoas indefesas a serem engolidas pelo mar diz mais da forma estereotipada como os estrangeiros olham para Kiribati e as ilhas do Pacífico do que das pessoas do Pacífico em si”.
“Se alguém passar uma semana ou duas em Kiribati na expectativa de dar com pessoas ‘em sofrimento’... Bom, é isso que encontrará. Mas se essa pessoa passar mais tempo no território e se dedicar a realmente mergulhar no património cultural e histórico do país, encontrará um povo incrivelmente resiliente, que durante séculos conseguiu encontrar formas de subsistência em ilhas que se encontram extremamente próximas do mar”, diz-nos Simon Donner.
“Tradicionalmente”, acrescenta, “os i-Kiribati [designação dada às pessoas nativas de Kiribati] viam-se como ricos, devido à abundância do oceano [Pacífico]”. “Esta narrativa de vulnerabilidade que se formou recentemente”, alega, “surgiu do colonialismo, de uma maior dependência de alimentos importados e, ainda, de uma necessidade de Kiribati se retratar como ‘vulnerável’ aos olhos do mundo”, para, realça, tentar incentivar acções urgentes no que ao combate à crise climática diz respeito.
O professor de climatologia diz que as nações desenvolvidas têm a responsabilidade de ajudar Kiribati (e demais nações insulares ameaçadas pela subida do nível do mar) a “gerir um futuro tornado espinhoso pela crise climática”. Acredita que elas devem não só reduzir drasticamente as suas emissões de gases com efeito de estufa, mas também facilitar a integração de pessoas naturais de Kiribati noutros países, para que, “se chegar o dia em que as pessoas efectivamente tenham de deixar as suas casas, os migrantes possam juntar-se a uma comunidade de pessoas expatriadas já existente, ao invés de serem tratados como refugiados”.