O calor extremo que assola a Índia há algumas semanas está a gerar dificuldades no abastecimento de energia e água. Com a subida das temperaturas, aqueles que têm o privilégio de recorrer a sistemas de refrigeração ou ar condicionado fazem-no agora com maior frequência e por mais tempo. Este aumento no consumo eléctrico tem não só contribuído para cortes de energia, mas também obrigado as autoridades a racionar o fornecimento ao sector industrial em alguns pontos do país.
Na casa de Ramachandran Natarajan, o ar condicionado tem estado muito tempo ligado. Este engenheiro de 54 anos vive em Calcutá, capital do estado de Bengala Ocidental, com a mulher e a mãe, octogenária. “Durante a noite, os quartos estão cheios de ar quente, o que prejudica muito a qualidade do sono. Para resolver o problema, estamos a utilizar o ar condicionado muito mais do que nos anos anteriores. Pessoas idosas, como a minha mãe, não saem de casa”, afirmou Natarajan ao PÚBLICO.
As temperaturas máximas registadas em seis distritos de Bengala Ocidental estão pelo menos cinco graus Celsius acima do normal, refere a agência Reuters. A mudança nos padrões de precipitação em Calcutá só torna o cenário ainda mais preocupante. As autoridades decidiram começar as férias dos alunos já na próxima semana, antecipando em alguns dias a data prevista no calendário escolar.
“O Verão em Calcutá é quente e húmido, com temperaturas a chegar aos 40 graus com humidade em torno de 80%. Este ano é assim também. Normalmente tínhamos os nor'westers [como são chamadas as chuvas localizadas, fortes e com trovoadas], o que suprimia a onda de calor. Mas este ano não houve nor'westers e isto está a causar grande desconforto. Suamos excessivamente, o que pode causar desidratação”, explicou ainda Ramachandran Natarajan.
Natarajan trabalha como engenheiro numa unidade fabril que, no passado, raramente teve problemas de energia. “Este ano, devido ao maior funcionamento de sistemas de ar condicionado, há uma sobrecarga da rede que provoca quedas de tensão. E, sim, estamos a ter cortes de energia em várias zonas, entre 15 a 60 minutos à tarde ou à noite”, conta. O consumo energético na Índia atingiu um recorde na quinta-feira e deve aumentar até 8% no próximo mês, referiu o Ministério da Energia, citado pela Reuters.
Os estados de Guzarate, Andhra Pradesh e Rajastão impuseram às fábricas um racionamento de energia para conseguir gerir os picos de consumos criados pela utilização de aparelhos de ar condicionado e ventiladores. O jornal Guardian refere que as centrais de energia já estão com pouco carvão, a principal fonte para a produção de electricidade para uma população de 1,4 mil milhões de pessoas. Os stocks de carvão estão nos níveis mais baixos dos últimos nove anos e há uma escassez de comboios para transportar o produto para as centrais.
No Noroeste, o Rajastão programou quatro horas de cortes de energia para as fábricas, tornando-se pelo menos o terceiro estado indiano a interromper a actividade industrial para gerir os picos de abastecimento eléctrico. As pausas sector fabril e o racionamento de energia constituem uma péssima notícia para a economia indiana que, após meses de desaceleração provocada pela pandemia, só agora voltava a recuperar. De acordo com a Reuters, estima-se que o racionamento se intensifique nos próximos dias, já que as ondas de calor e a retomada da actividade económica levaram a um ritmo de consumo energético inédito em quase quatro décadas.
Março mais quente de sempre
A Índia já tinha registado o mês de Março mais quente desde há 122 anos, quando o Departamento Meteorológico da Índia (IMD) começou a monitorizar as temperaturas no país. O primeiro-ministro Narendra Modi alertou para o risco de incêndios, uma vez que os termómetros estavam a disparar demasiado cedo. No aterro sanitário de Nova Deli, uma montanha de lixo com mais de 60 metros arde desde a última terça-feira. O Guardian refere que os bombeiros têm tentado em vão apagar o fogo com lama e areia. A fumaça negra e tóxica que emerge da lixeira escureceu o céu não só da capital, mas também de distritos vizinhos.
“O ar seco e quente produz excesso de gás metano nos locais de despejo de lixo, contribuindo para a ocorrência destes incêndios”, afirmou à agência AFP Pradeep Khandelwal, antigo responsável pela gestão de resíduos em Nova Deli. Na capital, as temperaturas ultrapassaram a barreira dos 40 graus Celsius durante alguns dias e as previsões apontam para que se mantenham à volta dos 44 até este sábado. As más notícias não terminam aí: o pico do calor de Verão ainda está por vir e só mais tarde, em Junho, é que as chuvas das monções devem trazer alguma moderação aos termómetros.
“Antes de as acções humanas na era pós-industrial terem aumentado a temperatura do planeta, teríamos visto o calor que atingiu a Índia no início deste mês cerca de uma vez em cada 50 anos”, disse ao Guardian Mariam Zachariah, investigadora no Grantham, o instituto do Imperial College de Londres dedicado às alterações climáticas. “Mas agora é um evento muito mais comum – podemos esperar temperaturas tão altas uma vez a cada quatro anos. E até que as emissões sejam interrompidas, estes eventos extremos tornar-se-ão ainda mais comuns”, alertou a investigadora.
As autoridades de saúde do estado de Guzarate já se preparam para um potencial pico de pacientes. “Já emitimos um alerta para os hospitais criarem alas especiais para pacientes com insolação ou outras doenças associadas ao calor”, afirmou o secretário de Saúde de Guzarate, Manoj Aggarwal, à Reuters. As estratégias de adaptação ao calor extremo são várias. No estado de Odisha, no Leste do país, foram montadas barracas em espaços públicos de grande circulação para oferecer água fresca à população. Em Bengala Ocidental, sais para reidratação oral e água são distribuídos gratuitamente à população.
O calor exacerbado coloca em risco milhões de trabalhadores braçais, incluindo os dos sectores fabril, agrícola e da construção civil. Em situações de eventos climáticos extremos, pode haver a ideia de que todos estão a ser afectados do mesmo modo. Uma especialista citada pela Reuters recorda que, na Índia, uma parte significativa das pessoas não poderá proteger-se recorrendo a sistemas de refrigeração. “A maior parte da população da Índia é rural, sem acesso a ar condicionado”, disse Arpita Mondal, hidroclimatologista do Instituto Indiano de Tecnologia de Bombaim, citada pela Reuters.
Os trabalhadores precários e as comunidades nos chamados slums (zonas urbanas comparáveis às favelas brasileiras) estão entre os mais vulneráveis ao calor, de acordo com um relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Isto porque as cidades tendem a ser mais quentes do que as áreas rurais devido, entre outros factores, ao efeito de retenção de calor dos edifícios.
As ondas de calor estão a varrer não só estados indianos, mas também o Paquistão, também no Sul da Ásia. Estima-se que as temperaturas sejam até oito graus Celsius mais altas do que o normal em diferentes zonas do Paquistão, chegando mesmo na última quarta-feira aos 48 graus em partes rurais de Sindh, alertou a Sociedade Meteorológica do Paquistão, citada pelo Guardian. Num país onde é o sector agrícola que faz a economia girar e dá trabalho a 40% da mão-de-obra, aqueles que cultivam a terra vêem-se obrigados a usar a água com extrema parcimónia. “A saúde pública e a agricultura no país enfrentarão sérias ameaças devido à temperatura extrema em 2022”, disse a ministra paquistanesa das mudanças climáticas, Sherry Rehman.