Estão degradados 40% dos solos do planeta, mas a regeneração ainda é possível

Relatório da Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação traça um retrato integrado dos problemas e das soluções de restauro possíveis.

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“A agricultura moderna mudou a face do planeta, mais do que qualquer outra actividade humana", disse Ibrahim Thiaw, secretário executivo da UNCCD Adriano Miranda/PÚBLICO/Arquivo

Décadas de desflorestação para a prática da agricultura e outras actividades económicas fizeram com que cerca de 40% dos solos do planeta estejam degradados e, se nada mudar, até 2050 ficarão degradados mais 16 milhões de quilómetros quadrados, uma área equivalente à América do Sul, diz um novo relatório da Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês).

O relatório Global Land Outlook traça um retrato integrado dos problemas que contribuem para a degradação dos solos e desertificação, juntamente com uma análise das medidas que nos podem ajudar a reverter a situação – como proteger a biodiversidade, promover a agricultura sustentável e controlar as alterações climáticas.

“A agricultura moderna mudou a face do planeta, mais do que qualquer outra actividade humana. É urgente repensar os nossos sistemas alimentares, que são responsáveis por 80% da desflorestação, 70% do uso de água doce e a maior causa de perda de biodiversidade em terra”, diz Ibrahim Thiaw, secretário executivo da UNCCD, citado no relatório.

Cerca de metade do valor da economia mundial, ou cerca de 42 biliões de euros, dependem do cultivo dos solos ou extracção de recursos. Mas os solos estão a tornar-se um recurso cada vez mais escasso: por um lado, é preciso manter florestas intactas para que possam absorver dióxido de carbono da atmosfera – onde a sua presença em excesso está a aumentar o aquecimento global e a causar as alterações climáticas.

Por outro lado, é preciso produzir mais comida para alimentar uma população em crescimento (e os sistemas alimentares são responsáveis por 29% das emissões de gases com efeitos de estufa. É também preciso libertar terrenos para implantar instalações de produção de energia, como campos de painéis solares e parques eólicos, energias renováveis que ajudam a conter o aquecimento global. “São muitas exigências concorrentes. Não resta muito solo livre com que se possa trabalhar”, disse à agência noticiosa Reuters Barron Orr, cientista-chefe da UNCCD.

"Um grito de alerta"

“Este relatório é um grito de alerta”, disse Ibrahim Thiaw à agência noticiosa. “Não podemos dar os solos como garantidos.” O documento – o segundo produzido desde 2017 – surge duas semanas antes da 15.ª Conferência das Partes da Convenção para Combater a Desertificação, que vai decorrer em Abidjan, na Costa do Marfim, de 9 a 20 de Maio.

Até 2021, já 115 nações se comprometerem a regenerar dez milhões de quilómetros quadrados de solo até 2030 – mais ou menos o tamanho da China. Mas não estão a ser mobilizados os fundos necessários para cumprir esse compromisso, que são na ordem de 1,5 biliões de euros, diz o relatório. “Os custos do restauro dos solos são provavelmente proibitivos para a maioria dos países em desenvolvimento, se não houver mecanismos internacionais de apoio financeiro e de partilha dos custos”, alerta o relatório.

Mas é algo que vale a pena: “Investir na restauração dos solos faz sentido em termos económicos e os seus benefícios excedem em muito os custos: por exemplo, estima-se que cada dólar investido em actividades de restauro renda entre sete a 30 dólares em benefícios”, diz o relatório. Redirigir para actividades de restauração dos solos os cerca de 700 mil milhões de dólares (661 mil milhões de euros) que todos os anos são canalizados para subsídios para a agricultura e combustíveis fósseis seria uma contribuição importante.

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O relatório destaca os projectos de "cabras sapadoras" em Portugal Adriano Miranda/PÚBLICO/Arquivo

Se nada for feito para travar e tentar reverter a degradação dos solos, podemos esperar que o aumento da procura de alimentos leve à perda de mais 470 milhões de hectares de áreas naturais, sobretudo na África subsariana e na América Latina. Mas a produtividade das terras agrícolas e dos pastos deverá diminuir em pelo menos 12%, e a África subsariana será a área mais afectada.

Estima-se ainda que podem ser libertadas mais 69 gigatoneladas (69 mil milhões de toneladas) de dióxido de carbono nos próximos 35 anos, provenientes de solos degradados que deixam de conseguir reter CO2, destruição de turfeiras e vegetação. Actualmente, os solos absorvem cerca de 25% das emissões de gases com efeito de estufa.

Mas ainda não é tarde demais para começar a inverter a situação, diz o relatório. Se os países se empenharem no restauro de 50 milhões de hectares de solos nas próximas décadas, poderemos esperar um aumento nas colheitas entre 5% e 10% nos países desenvolvidos, os solos restaurados poderão armazenar mais 17 gigatoneladas de carbono durante os próximos 35 anos, e perda de biodiversidade vai desacelerar – calcula-se que se possam evitar 11% das extinções.

Para lá chegar, há vários caminhos recomendados, como a prática de agricultura de conservação (sementeira directa), combinação de florestas com colheitas ou gado, uma melhor gestão e reabilitação das pastagens, barreiras para prever a erosão dos solos, entre outros. “Todos os agricultores, grandes e pequenos, podem praticar a agricultura regenerativa. Há uma panóplia de técnicas, não é necessária alta tecnologia ou um doutoramento para as usar”, disse Ibrahim Thiaw ao jornal The Guardian.

Exemplos bons e menos bons

O relatório dá vários exemplos de países que conseguiram fazer progressos, sob vários aspectos. Os projectos portugueses de reintrodução de herbívoros em zonas do interior despovoadas, onde o risco de incêndio é elevado como as “cabras sapadoras" , são citados, como exemplos de ideias para evitar a degradação relacionada com os incêndios florestais. É mencionado o caso da libertação de 45 cavalos garranos nos 1000 hectares da reserva privada da Faia Brava, no Vale do Côa, desde 2006.

Ou então o projecto de cultivo da café no Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, que está a ser alvo de um grande programa de recuperação, depois de anos ameaçado pela guerra. Para além de esforços de conservação dos guardas florestais e perseguição dos caçadores ilegais, actualmente cerca de 5000 agricultores que vivem na área do parque beneficiam directamente dos programas de incentivo à plantação de café e caju e produção de mel. Recebem assistência técnica e têm acesso a mercados de preço justo para colocar a sua produção, diz o relatório. “Até 2025, a marca Café da Gorongosa espera ter plantado e regenerado uma área de dez quilómetros quadrados com café cultivado à sombra, como parte de um programa para regenerar 80 quilómetros quadrados de floresta tropical, usando o cultivo de café como catalisador”, lê-se no documento.

Noutras zonas do mundo a regeneração dos solos não tem avançado tão bem. O relatório consagra uma secção ao que se passa com o projecto da Grande Muralha Verde para o Sara e o Sahel, uma das primeiras iniciativas de grande escala de restauração, estendendo-se ao longo de 8000 quilómetros e que envolve 11 países e a União Africana.

Inicialmente pretendia-se apenas plantar árvores, mas o projecto evoluiu, para uma abordagem de gestão integrada dos ecossistemas, com o objectivo de restaurar, até 2030, um milhão de quilómetros quadrados de solos degradados, sequestrar 250 milhões de toneladas de carbono e criar dez milhões de “empregos verdes” na região. Foram iniciados mais de 50 projectos desde 2012, diz o relatório, mas a mais recente avaliação mostrou que só 4% a 20% (dependendo da escala geográfica) dos objectivos iniciais foram alcançados até 2020, e que seria necessário que o ritmo anual de restauro dos solos alcançasse 80 mil quilómetros quadrados anuais.