Rashid Sumaila: “Gosto da ideia de pagarmos a pescadores para pescar plástico”
Professor e investigador nigeriano, Rashid Sumaila defende a proibição da pesca em alto-mar — zona marítima que, entende, deveria ser transformada numa grande área protegida — e considera que União Europeia deve cortar com os subsídios à pesca que prejudicam a sustentabilidade.
Rashid Sumaila acredita que a pesca em alto-mar deveria ser proibida e que deveríamos transformar essa zona marítima numa grande área protegida. Também defende a criação de subsídios através dos quais pescadores sejam pagos para pescar plástico. Argumenta ainda que, ao invés de apostar no comércio de barbatanas de tubarão, Portugal deveria “investir mais no turismo de observação” desses peixes, sublinhando que “os tubarões são mais valiosos para os humanos vivos do que mortos”.
Professor e investigador na Universidade de British Columbia (UBC), no Canadá, o nigeriano de 63 anos dedica-se ao estudo de áreas e questões como bioeconomia, subsídios à pesca, áreas marinhas protegidas, pesca ilegal, poluição marítima e alterações climáticas. O PÚBLICO entrevistou o autor de Infinity Fish, livro publicado em Outubro de 2021, antes da sua participação na conferência Ocean action is climate action — oceano e clima, impactos e oportunidades. Co-organizado pela Fundação Oceano Azul com a ANP/WWF, a Sciaena e a Zero, o evento aconteceu em Abril no Auditório Mar da Palha, do Oceanário de Lisboa.
Fale-me sobre o livro que publicou em Outubro do ano passado, Infinity Fish. Porquê esse título e qual a tese que tenta apresentar na obra?
Alego que o peixe é mais valioso do que o diamante. Uma vez fui convidado a dar uma palestra na Namíbia, onde tanto a pesca como a exploração de diamantes são actividades importantes. E há muita mineração em águas profundas nesse país, pelo que os pescadores e os mineiros estão sempre em guerra. Quando, na minha palestra, disse que o peixe é mais valioso do que diamante, toda a gente ficou em choque.
Mas por que é que eu disse isso? Em primeiro lugar, o peixe é renovável. Se os recursos marítimos forem geridos de forma inteligente e sustentável, as pessoas podem pescar o peixe de que necessitam ano após ano. Não dá para se explorar o mesmo território mineiro duas vezes.
Segundo motivo: o diamante é muito elitista. Quem trata da mineração e fica com os lucros é um grupo muito reduzido de pessoas. O peixe, por outro lado, pode ser pescado por qualquer um.
De onde vem o nome Infinity Fish? Aquilo que defendo no livro é que a geração actual está a fazer (ou necessita de fazer) tudo o que está ao seu alcance para depositar nas mãos das gerações vindouras um oceano cheio de vida e sustentabilidade. Tudo para que, depois, os nossos filhos e netos possam fazer o mesmo, olhando pelo futuro dos seus bisnetos e trinetos. Se conseguirmos fazer isto de forma continuada, teremos peixe infinitamente.
O livro toca, por exemplo, no tema da pesca excessiva. Sabemos que, à escala mundial, muitos stocks de peixe estão a ficar extremamente pobres em termos de biodiversidade. A menos que haja uma inversão rápida e dramática do cenário actual, que efeitos a curto prazo isso terá nos ecossistemas marinhos, no combate à crise climática e nas condições de vida de comunidades cuja sobrevivência depende da pesca?
Os peixes não são muito diferentes dos humanos. Pescar demasiado peixe é como levantarmos demasiado dinheiro das nossas contas bancárias: quanto mais dinheiro se tira, mais as contas encolhem. A pesca funciona do mesmo modo. Estamos a tirar demasiado peixe do mar e estamos, também, a perturbar a cadeia alimentar marinha. Digo isto porque nós começamos por pescar todos os peixes das espécies mais valiosas. Depois pescamos as segundas mais valiosas, depois as terceiras e assim sucessivamente. Com isto, estamos a truncar a cadeia alimentar marinha, o que a enfraquece, dado que ela é uma teia, uma rede de animais que se relacionam uns com os outros.
Também estamos a comprometer os ecossistemas marinhos. Algum do equipamento que utilizamos destrói as casas dos peixes. Nenhum humano gosta de viver em situação de sem abrigo, pois não? Os peixes também não gostam.
Todas estas coisas que não estamos a fazer de forma correcta levam as nossas zonas de pesca ao esvaziamento — e a falta de peixe em abundância prejudica a economia e a empregabilidade. Tudo está interligado.
Segundo uma das estimativas da UBC, 260 milhões de pessoas à escala global dependem financeiramente do sector marítimo. E a maioria destas pessoas vive em grandes países em desenvolvimento, como as Filipinas e a Nigéria. A Europa está muito preocupada com a imigração ilegal, mas as pessoas da África Ocidental, onde o peixe está a desaparecer, não vão ficar sentadas à espera da morte. Elas metem-se em barcos, fogem e tentam sobreviver. Para o nosso próprio bem, é fulcral protegermos o ambiente e o oceano.
Que países têm sabido combater o problema da pesca insustentável?
Devido à forma como estão desenhados, muitos dos subsídios que são atribuídos ao sector da pesca acabam por encorajar a pesca excessiva. E a Noruega, por exemplo, tem conseguido acabar com alguns desses subsídios. Mas a União Europeia (UE) poderia estar a fazer um trabalho muito melhor. Eu e alguns colegas fizemos essa crítica num pequeno artigo que uma vez escrevemos para a [revista científica] Nature.
Qual deveria ser a linha de acção política dos Estados-membros?
A UE tem de acabar com estes subsídios prejudiciais. Outro problema tem que ver com o facto de muitas embarcações europeias (e, também, norte-americanas) pescarem em águas africanas. Isto levanta problemas e a UE tem de pensar muito a sério sobre este tema.
A pesca em águas distantes está a agudizar-se porque os stocks de peixe na Europa estão a ficar mais magros e os pescadores têm de procurar peixe noutras regiões. É muito importante gerir-se os stocks europeus de forma consciente. A partir do momento em que a pesca se tornar mais sustentável, deixará de ser necessário os navios europeus pescarem noutras águas que não as suas.
Como é que essa pesca em águas distantes tem afectado as comunidades das regiões exploradas pelos pescadores?
Quando essas embarcações grandes chegam a certas regiões costeiras (que, por norma, são mais empobrecidas), os pescadores locais sofrem. De repente, estão a lutar pelos mesmos recursos contra barcos muito mais potentes. Outra coisa: o peixe que os navios europeus pescam é, habitualmente, processado na China e não naqueles países pequenos. Ou seja: não há lucro para as comunidades locais. As consequências sociais e económicas da pesca em águas distantes são muito grandes.
De volta ao tema dos subsídios: na sua óptica, como pode ser desenhado um subsídio que não encoraje a pesca excessiva?
Têm surgido ideias muito interessantes. Gosto, por exemplo, da ideia de, com o dinheiro dos contribuintes, pagarmos a pescadores para pescar plástico. Como todos sabemos, o plástico está a dar cabo do oceano. Uma estimativa sugere que, caso não melhoremos de forma significativa a forma como lidamos com o lixo que produzimos, haverá, por volta de 2050, mais plástico do que lixo no oceano. A ideia de pagarmos a pescadores para fazer este tipo de trabalho é excelente. Eles recebem o dinheiro de que precisam para sobreviver, limpam o oceano e, uma vez que não precisam de pescar, dão uma “folga” aos peixes.
Em Junho, a Organização Mundial do Comércio (OMC) terá a oportunidade de firmar um acordo global para limitar os subsídios à pesca. Tem acompanhado esse processo?
Sim, sem dúvida. O primeiro artigo que eu e o meu colega Gordon R. Munro escrevemos sobre subsídios saiu em 2002, creio que um ano após a OMC ter começado a discutir o acordo. Na UBC criámos uma base de dados, analisando todos os subsídios à pesca que existiam em território europeu — com o tempo, acabámos por fazer um estudo à escala planetária.
É importante termos um acordo global porque o oceano está interconectado. Não faz sentido dizer-se: “Em Portugal, ocupem-se simplesmente da gestão das vossas águas, vocês vão ficar bem.” Não é assim que as coisas funcionam. Os peixes não respeitam fronteiras, não precisam de vistos. Eles mudam-se para onde querem.
Defende que deveríamos impedir a pesca em alto-mar, transformando essa zona marítima numa grande área protegida. Essa ideia trata-se de um sonho idílico? Ou é concretizável?
Quando comecei a falar desta ideia, sabia que a sua implementação seria difícil, porque estamos a falar de uma porção enorme do oceano. Mas este mundo é um lugar muito interessante. Quando uma pessoa apresenta uma ideia aparentemente radical pela primeira vez, a primeira reacção que ouve é sempre: “Isto é impossível.” Mas depois, gradualmente, as coisas vão acontecendo. Sabia que, em 2016, o Mar de Ross, na Antárctida, foi declarado a maior reserva marinha protegida do mundo? Já faltou mais para a minha sugestão se materializar.
Por que é que defendo o fim da pesca em alto-mar? A maioria dos peixes que são capturados em alto-mar entra e sai do mesmo, alternando entre o alto-mar e águas nacionais, isto é, zonas económicas exclusivas (ZEE) de vários países. Actualmente, o peixe que se apanha em alto-mar é capturado sempre pelos mesmos sete ou oito países. Mas é suposto o alto-mar ser de todos. Se proibirmos a pesca nessa zona marítima, países mais pequenos e em desenvolvimento, onde a fome é um problema grave, poderão ter o que pescar quando os peixes entrarem nas suas águas.
Sabia que...
...mais de 60% dos stocks de peixe à escala mundial estão sobreexplorados? A percentagem é de um relatório feito em 2014 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
Há quem argumente que, se o alto-mar fosse transformado numa área protegida, muitas pescarias que exploram recursos encontrados em alto-mar não seriam viáveis sem subsídios estatais. Como tal, só conseguiriam empregar um número reduzido de pessoas. Como podemos proibir a pesca em alto-mar sem esse problema acontecer?
Essa pergunta é boa, de tal modo que a integrei na minha pesquisa. No primeiro relatório que eu e a minha equipa escrevemos sobre este tema, fizemos uma análise quantitativa muito simples: se “fechássemos” o alto-mar, quantos empregos seriam comprometidos e quão graves seriam as perdas em termos de capturas? Os números não foram muito expressivos. Viemos a constatar que a captura de peixe mais produtiva acontece em águas nacionais. E são muito poucos os peixes que passam as suas vidas inteiras em alto-mar. Mais: esses peixes são muito especiais. Crescem muito lentamente e alguns deles chegam a viver mais de 100 anos. Tenho uma colega que é professora na Universidade do Estado do Oregon, nos Estados Unidos, e ela diz o seguinte aos seus alunos: “Não comam nada que seja tão velho como os vossos avós.”
O alto-mar não nos dá capturas assim tão grandes. A grande razão pela qual as pessoas pescam lá são os stocks de peixes altamente migradores, como o atum, por exemplo. O atum entra e sai das ZEE. Mas entra, ou seja, pode ser capturado em águas nacionais.
Portugal é o terceiro país europeu que mais captura tubarões e raias. Segundo um relatório recente da Associação Natureza Portugal, há uma “protecção inadequada” das 117 espécies de tubarões, raias e quimeras existentes nas nossas águas. Por onde passa a resolução deste problema? Passa pela criação de áreas marinhas protegidas, pelo fim do comércio de barbatanas de tubarão?
Em termos gastronómicos, o mercado que há para as barbatanas de tubarão não é muito grande — não há muitos países interessados nisso a não ser a China e Hong Kong. Além disso, a maioria das pessoas que retira as barbatanas acaba por, depois, descartar as carcaças dos tubarões no oceano de forma negligente, o que tem consequências gravíssimas do ponto de vista ambiental.
Portugal deveria investir mais no turismo de observação de tubarões, que é bastante relevante nalguns países tropicais. Os tubarões são mais valiosos vivos do que mortos para os humanos. Um tubarão pode gerar mais de um milhão de euros ao longo da sua vida. Mas se um pescador capturar um tubarão e vender as suas barbatanas à China, não recebe mais do que, sei lá, um ou dois euros por elas.
O que está a investigar neste momento? Em que projectos está a trabalhar?
Posso falar de dois. Um deles está a ser financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Estamos a analisar os efeitos que a pesca em águas distantes está a ter nos ecossistemas marinhos de muitos países em desenvolvimento na Ásia, na África e nas Caraíbas.
Quanto ao segundo projecto, estamos a olhar com muita atenção para a questão dos subsídios. A minha equipa na UBC está a trabalhar com o Banco Mundial, estamos a estudar os impactos que subsídios prejudiciais têm tido em três regiões fundamentais: a Mauritânia — é um país importante, porque muitos barcos estrangeiros pescam nas suas águas —, o Mar da China Oriental e o Mar da China Meridional.