Governo britânico deixa cair planos para repelir barcos de migrantes no Canal da Mancha

Proposta dava luz verde às autoridades fronteiriças para usarem métodos controversos para forçar os migrantes a regressar a França. Denúncia apresentada por opositores aos “pushbacks” ia ser ouvida em tribunal na próxima semana.

Foto
Família de migrantes recebida em solo britânico depois de ter sido resgatada no Canal da Mancha HENRY NICHOLLS/Reuters

Ao fim de vários meses a defendê-la no espaço público, na comunicação social e nas diferentes comissões especializadas da Câmara dos Comuns e na Câmara dos Lordes, o Governo britânico deixou cair uma controversa proposta para transformar em prática oficial e reiterada das suas autoridades fronteiriças a chamada táctica dos “pushbacks” – o acto de repelir e devolver ao local de partida as embarcações de migrantes e de requerentes de asilo que pretendem entrar no Reino Unido pela via marítima.

No caso concreto, o Governo de Boris Johnson e, particularmente, a ministra do Interior, Priti Patel, queriam devolver a França os barcos de migrantes que atravessam o Canal da Mancha para tentar chegar “de forma irregular” ao território britânico.

Para tal, foi anunciado que a Marinha e o Ministério da Defesa iriam comandar essas operações e ter autoridade total sobre todos os navios, incluindo os da Força Fronteiriça (Border Force) e os do Ministério do Interior.

Foram ainda discutidos e propostos diferentes mecanismos para proteger os funcionários fronteiriços de serem processados judicialmente em caso de lesões ou de falecimento de migrantes no âmbito de uma operação para os repelir.

Segundo o Ministério do Interior britânico, 28.526 pessoas completaram, no ano passado, a travessia do Canal da Mancha, a maioria em barcos de borracha.

A renúncia a estes planos – inseridos no projecto de lei Nationality and Borders Bill, a grande reforma migratória pós-“Brexit, que, mesmo estando na sua etapa legislativa final, continua a encontrar obstáculos e opositores nas diferentes câmaras do Parlamento, e a ver sucessivamente adiada sua entrada em vigor –, foi confirmada no início desta semana pelo departamento jurídico de Downing Street. Mas o timing da decisão está a dar que falar.

Isto porque a desistência acontece a cerca de uma semana do início de uma sessão de três dias no Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e do País de Gales, onde o sindicato PSC e as organizações de direitos humanos Care4Calais, Channel Rescue e Freedom from Torture, que interpuseram uma acção judicial de oposição à medida, invocando os tratados e outros compromissos internacionais do Reino Unido em matéria de acolhimento e protecção de refugiados ou requerentes de asilo, iriam apresentar o seu caso.

Para Mark Serwotka, secretário-geral do PCS – que representa uma importante fatia de funcionários públicos que integram os vários departamentos do Governo –, estamos perante uma “retirada humilhante do Governo” e uma “vitória estrondosa para os trabalhadores do Ministério do Interior e para os refugiados”.

“A táctica dos pushbacks é extremamente perigosa e representa um enorme risco para a vida e para a integridade física [dos migrantes]. Não estamos minimamente disponíveis para permitir que os nossos membros sejam colocados nesta situação horrível”, reagiu Serwotka, citado pelo The Guardian.

“O PCS sente-se orgulhoso por ter apresentado esta acção judicial, em conjunto com grupos de refugiados, para impedir que esta proposta moralmente condenável e absolutamente desumana pudesse ver a luz dia”, acrescentou. “Não há dúvidas nenhumas de que foram salvas vidas”.

Travessias “desnecessárias”

Através do seu porta-voz, Downing Street negou, no entanto, que a retirada da proposta tenha como fundamento algum tipo de receio de derrota na Justiça, garantindo ser necessário “considerar todas as opções seguras e jurídicas para travar” as travessias “desnecessárias” no Canal da Mancha, “incluindo fazer os barcos voltarem para trás”.

Citado pela BBC, o porta-voz assegurou ainda que “todo o Governo está unido nos seus esforços” para “quebrar o modelo de negócio dos gangues criminosos que exploram as pessoas” que pretendem emigrar para o Reino Unido.

É precisamente nesse objectivo traçado pelo Executivo britânico que se enquadra uma outra proposta migratória altamente polémica, anunciada recentemente, e que pressupõe um acordo com o Ruanda, avaliado em 120 milhões de libras (cerca de 144 milhões de euros), segundo o qual a maioria dos migrantes “irregulares” que chegam ao Reino Unido através do Canal da Mancha são enviados para o país africano, com a possibilidade de apresentarem aí os seus pedidos de asilo.

Apresentando fundamentos éticos, jurídicos, económicos ou de exequibilidade, o plano já foi criticado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, por mais de 160 organizações de direitos humanos, por praticamente toda a oposição política britânica e até por alguns deputados do Partido Conservador, incluindo a antiga primeira-ministra Theresa May.

Sugerir correcção
Comentar