Biblioteca da Censura: a devolução ao público

A coleção “Biblioteca da Censura”, publicada pelo Público e A Bela e o Monstro, associa-se à Biblioteca Nacional de Portugal no âmbito da exposição “Biblioteca da Censura: Obras Apreendidas e Proibidas no Estado Novo”, comissariada por Álvaro Seiça, Luís Sá e Manuela Rêgo (3 de maio – 3 de setembro 2022), para levar até si os exemplares originais proibidos e cortados pelo Estado Novo. Durante dois anos, ao ritmo de um livro por mês, sairão 25 livros para comemorar os 50 anos do 25 de abril de 1974.

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Daniel Rocha

Pela primeira vez, obras originalmente cortadas pelos censores do Estado Novo são reimpressas tal como a ditadura as deixou: marcadas, carimbadas e encarceradas em gabinetes burocráticos. Durante quarenta anos, os censores salazaristas e marcelistas redigiram mais de 10.000 relatórios de leitura a livros de autores portugueses, estrangeiros e em tradução para língua portuguesa.

Embora a censura se tivesse constituído com a Ditadura Militar de 1926, o regime do Estado Novo (1933-1974) ampliou e cimentou um cerrado controlo, vigilância e repressão dos escritores, editores, distribuidores e livreiros. A partir de 1934, os Serviços de Censura, com a colaboração da polícia política, que apreendia exemplares nas livrarias, editoras e em rusgas domiciliárias, iniciaram uma terrível campanha de silenciamento da palavra impressa, mas também das artes, cinema, teatro e todas as áreas da informação, incluindo os jornais, a rádio e, mais tarde, a televisão.

Esta nova coleção de livros fac-similados resulta de uma seleção de exemplares recuperados após o assalto da população, em 26 de abril de 1974, à última sede dos Serviços de Censura, em Lisboa, e que estão hoje depositados na Biblioteca Nacional de Portugal. A Biblioteca dos Serviços de Censura era o próprio arquivo dos censores, que a usavam como referência, no caso de haver reclamações, pedidos de reedição ou tradução de livros importados. Tratava-se, portanto, de uma biblioteca de consulta privada e secreta, compilada precisamente para que os livros temidos pelo regime não fossem lidos. No fundo, para que ninguém soubesse que alguma vez chegaram sequer a existir. Foi, assim, uma “antibiblioteca”.

Dos livros censurados, muitos foram também autorizados. Menos foram “autorizados com cortes”, “vistos”, “dispensados” e mesmo proibidos para mais tarde serem autorizados. Desde a sua data de publicação, por vezes poderia demorar décadas até que fossem finalmente descobertos e examinados. Outras vezes podiam ser autorizados a circular em edição original, geralmente francesa, mas a sua tradução ficava vedada. Outras vezes podiam ser autorizados desde que publicados “fora de mercado”, ou se os seus autores não fossem mencionados na imprensa.

Hoje podemos ler os relatórios que os censores produziram internamente. As suas análises revelam um desvelar de adjetivos impiedosos. Os seus critérios de exame moral, político e social baseavam-se na ideologia do regime, cuja doutrina era corporativista, nacionalista, anticomunista, colonialista, imperialista, católica, patriarcal e heteronormativa. Assim, três dos grandes focos de obsessão dos censores foram a “imoralidade”, o “comunismo” e a “pornografia”. Descreviam os livros “inconvenientes” como sendo demasiado realistas, tendo “aspectos comunizantes”, sobretudo nas décadas de 1940 e 50 em que fustigaram a literatura neorrealista. A par destes tópicos, as mulheres foram também perseguidas e silenciadas. O intuito do regime era impedir os direitos das mulheres e a sua emancipação social e sexual.

Os livros da Biblioteca da Censura mostram os traços deixados pelos seus leitores autoritários: carimbos, datas, sublinhados e cortes a lápis azul e vermelho. E o que é que os censores cortavam? Cortavam ficção e poesia, cortavam ensaio e teatro. Cortavam obras de literatura, ciência política, história, geografia, economia, filosofia, sociologia, música, belas-artes, cinema, educação, religião e, claro, livros sobre sexualidade, literatura erótica e pornográfica. Cortavam livros de adversários políticos, de laureados do Prémio Nobel de Literatura, mas também um ex-Presidente da República Portuguesa, Manuel Teixeira Gomes, e um Ministro da Cultura francês, André Malraux, antes e após o seu longo mandato. Cortavam obras que hoje são clássicos da literatura, mas também obras sem grande relevo. Cortavam, no seu dizer, livros “imorais, pornográficos, comunistas, irreligiosos, subversivos, maus, antissociais, deseducativos, dissolventes, anarquistas e revolucionários”.

Os escritores e os intelectuais sofreram gravíssimas consequências com a ação direta e indireta censória e com o aparato repressivo do regime. Através da polícia política, alguns sofreram não só a violência física e psicológica, mas também a tortura, o cárcere e o assassinato. Quase todos os que se opunham ao poder vigente sofreram cortes nas suas obras, interdições e restrições das suas liberdades fundamentais. Este contexto pressionava o seu trabalho de escrita, visto que o medo do juízo moral e ideológico desencadeava uma autocensura. Já em 1945, em entrevista ao Diário de Lisboa, Ferreira de Castro auscultava o impacto na sociedade vindoura: “O que se tem estado a fazer em Portugal é desfalcar o futuro do legado espiritual que lhe podíamos deixar”.

A coleção “Biblioteca da Censura” apresenta 25 volumes que o regime quis ocultar e que guardou secretamente para que ninguém os lesse. É, portanto, um gesto democrático fazer reemergir o que a ditadura submergiu, com as rasuras que deixou e os traumas que encerrou. Restituir ao público o que o público não leu é um ato de “descensura”, de devolução dos livros que a ditadura suprimiu da vida intelectual e cultural durante quase meio século. Serão dois anos, mês a mês, de libertação.

Este projeto beneficiou de financiamento do Programa-Quadro de Investigação e Inovação Horizonte 2020 da União Europeia ao abrigo da convenção de subvenção Marie Skłodowska-Curie n.º 793147, ARTDEL. https://artdel.net

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