“Podemos ter restrições de água para consumo humano”
As secas podem não só afectar a disponibilidade e o preço dos alimentos que comemos, mas também levar a uma maior concentração de contaminantes no solo.
Portugal está em situação de seca hidrológica desde o início deste ano de 2022. Para já, a água continua a chegar às torneiras do país. Esta disponibilidade de um recurso tão essencial nas zonas urbanas pode dar-nos a impressão, ilusória, de que a ausência de chuvas é um problema sobretudo para as zonas rurais. É um engano: os recursos hídricos apoiam sectores económicos díspares como a agricultura e a energia e, como estão interligados, as decisões políticas associadas à gestão da água acabam por afectar, ainda que indirectamente, a saúde e o bem-estar de todos.
“As pessoas podem realmente começar a vivenciar restrições de água para consumo humano e higiene em Portugal. Isto porque a exploração deste recurso para actividades económicas – como é o caso do turismo – não permite que seja feito de outra forma. Será que Portugal está a gerir bem os recursos naturais em contextos de alterações climáticas? As previsões sugerem um agravamento da situação e que temos de nos adaptar rapidamente”, alerta Susana Viegas, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP – Nova).
Se queremos ter campos de golfe para atrair turistas, sugere Susana Viegas, então não poderemos mais irrigá-los com água para consumo humano (a chamada “água da torneira”). Temos de usar outro tipo de fonte de rega. “Isto ainda não se faz em Portugal porque o país nunca lidou verdadeiramente com a escassez de água – mas isto vai mudar daqui para frente”, alerta a investigadora especializada em saúde ambiental.
Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero, segue uma linha de pensamento semelhante. “Está na hora de não fazermos mais investimentos ociosos, o que de resto já está previsto na Lei de Bases do Clima. Já não nos podemos dar ao luxo de tomar decisões políticas que ponham em causa as adaptações climáticas. Se eu apostar em mais 130 mil hectares de regadio, que é o que está previsto pelo actual Governo, sabendo que terei cada vez menor disponibilidade de água, já sei que vou ficar aflito porque vou ter todos os agricultores a pedir água. Nós não podemos fazer isso, temos de escolher os investimentos que são estruturantes”, afirma o ambientalista.
A água para consumo tem um papel essencial não só na hidratação, mas também na nutrição. É com a água da torneira com que lavamos ou preparamos os alimentos que consumimos. Além disso, a disponibilidade de água condiciona a qualidade e a variedade dos produtos que cultivamos. Se os vegetais ficam mais caros, por exemplo, isto pode tornar a dieta dos portugueses menos equilibrada e saudável.
Qualidade e variedade dos alimentos
“Portugal está a atravessar uma grande seca e isto tem um impacto na variedade dos alimentos disponíveis no que toca à produção local. Esta situação levará a que tenhamos menor oferta de alimentos e, possivelmente, irá obrigar-nos a recorrer a outros tipos de mercado. Isso pode implicar maior custo devido ao transporte dos mesmos, uma vez que podem exigir refrigeração para serem conservados. A viagem mais longa também tem consequências ambientais”, avalia Susana Viegas.
A escassez de água também leva a uma maior concentração de contaminantes no solo. “Em situações de seca, a reutilização de águas nas regas – algo que até ao momento Portugal não faz – poderá colocar em causa a nossa segurança. Isto dependerá, é claro, da água utilizada e de como ela foi tratada”, refere a docente da Universidade Nova de Lisboa. Se for rega de jardim, que é uma zona de cultivo de vegetais não comestíveis, não haverá problema. Mas já utilização de lamas de tratamento pode levantar problemas devido à contaminação com óleos e metais pesados.
Sabia que...
...a reutilização de lamas poluídas num terreno fértil pode levar à contaminação de cursos de água ou mesmo de alimentos, pois há vegetais conseguem absorver metais pesados do solo?
“Preocupa-nos muito que a reutilização de lamas poluídas num terreno fértil possa levar à contaminação de aquíferos ou de alimentos – alguns [vegetais] conseguem absorver estes contaminantes do solo, no caso dos metais pesados. Isto [na agricultura] dá uma volta muito grande, está tudo interconectado de alguma forma”, diz Susana Viegas.
Para a docente da Universidade Nova de Lisboa, este é um exemplo do efeito bola de neve causado pelas alterações climáticas. “É importante que os consumidores pensem nisso: o impacto desta crise climática não se limita à subida da temperatura e ao nível das águas”, afirma. O efeito da crise do clima pode, no futuro, fazer-se presente na nossa vida em momentos que hoje consideramos tão banais como a hora do banho, de encher o carrinho do supermercado ou de fazer uma aula de natação. Da higiene pessoal à nutrição, passando até pela prática de exercício físico, a crise climática terá repercussões na saúde e bem-estar.
Por fim, é preciso lembrar que a saúde não tem apenas determinantes sociais, mas também económicos. Uma comunidade que perde a sua actividade económica poderá ter menos condições para ter uma vida saudável em termos de alimentação, habitação e conforto térmico. Por exemplo: o aumento da temperatura e da frequência de secas influencia o crescimento da cortiça, tendo um impacto na espessura da mesma e, consequentemente, na comercialização do produto. Se o sector corticeiro for duramente afectado pela crise climática, haverá todo um grupo à volta desta actividade que sofrerá consequências com possíveis repercussões na saúde, incluindo a mental.