“Estaremos expostos a novas toxinas nos alimentos”

A subida da temperatura global favorece a proliferação de fungos nos cereais, o que aumenta a presença de toxinas carcinogénicas em alimentos como o pão e as bolachas.

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O aumento do preço dos cereais pode fazer com que sejamos menos exigentes com o que comemos Adriano Miranda

As alterações climáticas têm efeitos adversos óbvios na agricultura, como o aumento do custo de produção e a diminuição da quantidade e qualidade da colheita. O que pode ser menos intuitivo é a repercussão que estas mudanças têm na comida que colocamos no prato e, por extensão, as doenças que podem potenciar. Um exemplo: a subida da temperatura global favorece a proliferação de determinados fungos nos cereais, o que aumenta a presença de toxinas potencialmente carcinogénicas nos grãos que utilizamos para fazer pão, bolachas e cereais para o pequeno-almoço.

“Estas toxinas naturais são produzidas por fungos. Todos os microrganismos têm uma temperatura óptima de crescimento, e um intervalo de temperaturas nos quais conseguem proliferar-se. Diferentes espécies de fungos têm diferentes temperaturas óptimas de crescimento. Se a temperatura vai subindo – que é o que se tem verificado na zona mediterrânica –, fungos diferentes vão ter oportunidades de crescimento”, explica Carla Martins, investigadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP – Nova).

Estes eventos biológicos ocorrem durante o cultivo, transporte e armazenamento de cereais e representam um risco, uma vez que tais micotoxinas estão associadas ao aparecimento de cancros. A especialista em segurança alimentar explica que tais contaminantes “são muito difíceis de evitar”. “Se nas nossas próprias casas isto acontece, imagine num silo ou num campo de cultivo. Diferentes fungos crescerão e produzirão diferentes toxinas. É por isso que dizemos que o padrão de exposição da população vai mudar, estaremos expostos a novas toxinas carcinogénicas. Podemos até estar expostos às mesmas, mas certamente em padrões de frequência e concentração díspares”, conclui a investigadora.

Vinho, café e chocolate

A população portuguesa já está exposta a estas micotoxinas, que são potencialmente carcinogénicas. Assim, o desejável é que a frequência e concentração desses contaminantes alimentares não aumente. “Estamos expostos em alimentos que nos são muito queridos: pão, vinho, café e chocolate. Só coisas boas! Isto pode implicar uma exposição acentuada de grupos de população vulnerável – como é o caso das crianças, que consomem cereais, pão e bolachas ao pequeno-almoço e ao lanche. O que nos preocupa é que aquilo a que estamos expostos neste momento é muito diferente daquilo que poderemos estar dentro de cinco ou dez anos”, esclarece Susana Viegas, professora da ENSP – Nova.

Outras circunstâncias, como a ocorrência de um conflito no qual tanto o país invadido como o invasor são grandes produtores de cereais – é o caso da actual guerra na Ucrânia –, também influenciam o sistema alimentar em tempos de crise climática. “Se calhar vamos começar a recorrer a cereais provenientes da América do Sul e, como sabemos, tudo o que está abaixo do Equador tem maior infestação fúngica. Está descrito na literatura científica. Esta importação transatlântica envolve um transporte marítimo no qual não estão reunidas as condições para prevenir a infestação e o crescimento de fungos. E o simples processo de cultura em temperatura elevada já potencia a infecção fúngica. Quando o produto chega a Portugal, [a contaminação] já é elevadíssima”, avalia Susana Viegas.

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A agricultura portuguesa não garante a necessidade interna de cereais Enric Vives-Rubio

Uma vez chegada ao país de destino, a carga poderá apresentar colónias visíveis, que serão removidas antes do processamento dos grãos ou cereais. Mas as toxinas carcinogénicas que foram produzidas durante o cultivo e a viagem, estas persistem. “As toxinas não desaparecem com alta temperatura nem pressão. Continuam presentes no café, por exemplo, mesmo após o processo de torrefacção. Isto é uma bola de neve e a guerra [na Ucrânia] é mais um determinante ambiental para a saúde”, afirma a docente da ENSP – Nova.

O que é que poderíamos fazer para contrariar esta expansão fúngica? A aplicação de fungicidas não é a resposta ideal, uma vez que estes produtos, tendo um grau de toxicidade considerável, também trazem consequências para a saúde humana e ambiental. “Teríamos um novo problema. Todas estas questões da alimentação são equilíbrios muito delicados, as pontas estão todas interconectadas”, avalia Carla Martins. A solução perfeita continua a ser evitar o aumento da temperatura global.

À medida que se multiplicam eventos meteorológicos extremos – secas, inundações e ondas de calor –, a par com outras alterações que ocorrem no ecossistema também em decorrência das mudanças no clima – como a maior frequência de pestes ou desequilíbrios na polinização –, muitos outros factores da delicada equação da nutrição humana são afectados.

Sabia que...

...a variação da temperatura afecta as próprias sementes, o sistema de germinação e reprodução das plantas, podendo alterar o valor nutricional dos alimentos que comemos?

Se as colheitas fracassam e os custos de produção são mais elevados (porque exigiram uma adaptação do sistema de irrigação, por exemplo), isto significa que os alimentos locais que chegarão às prateleiras serão possivelmente mais caros, menos diversos e até menos nutritivos – o que também tem um impacto na saúde humana. “A variação da temperatura afecta as próprias sementes, o sistema de germinação e reprodução das plantas, podendo alterar o valor nutricional dos alimentos que comemos”, alerta Susana Paixão, professora do Instituto Politécnico de Coimbra e presidente da Federação Internacional de Saúde Ambiental.

O preço a pagar por um alimento, assim como a disponibilidade do mesmo na prateleira, também são factores importantes quando se fala de saúde e nutrição. “Um alimento tem de estar disponível, tem de ser seguro e tem de ter um preço adequado à população. Se a população não o conseguir pagar, quase que podemos dizer que ele deixa de ser um alimento. Tem de reunir todas estas condições. Qual é o ponto certo para manter tudo isto a funcionar? É uma harmonia muito precária”, confessa Carla Martins.

Da mesma forma que não podemos olhar para elementos de um ecossistema isoladamente – porque há complexas relações entre as espécies que o compõem –, seria ingénuo pensar que as mudanças no clima teriam efeitos compartimentados num sistema alimentar que é, também ele, global. “Temos de compreender que estamos todos interdependentes. Se importamos alimentos de outros continentes, somos afectados também. Isto quer dizer que nós todos no planeta vamos ficar muito menos exigentes com aquilo que nos chega às mãos”, conclui Susana Viegas. E, assim, voltamos à ideia de equilíbrio precário na saúde ambiental: se procuramos os preços mais baixos possíveis, conseguimos tornar a comida acessível, mas podemos estar a consumir produtos com menos qualidade.