}

Outro sangue. Outra guerra

São muitos os impactos que um conflito armado pode ter sobre a natureza, ou sobre a causa ecológica. É facilmente percetível a destruição da paisagem, enquanto ativo ecológico, e a perda direta de biodiversidade, quer por bombardeamento e destruição, quer como parte da estratégia militar de defesa ou ataque.

A guerra na Ucrânia tem originado os trágicos e intemporais efeitos económicos, sociais e humanitários decorrentes de um conflito armado, que, naturalmente, nos devem valer as mais diversas reflexões e análises. Num momento de crise profunda, em que estão em causa vidas e os mais elementares direitos humanos, não nos alheando do que devem ser as prioridades absolutas, encontre-se, ainda assim, espaço para mais uma ponderação. Dediquemos alguns minutos aos valores que são invariavelmente os últimos a ser contemplados no grande xadrez das sucessões de estabilidade e de crise: os naturais.

São muitos os impactos que um conflito armado pode ter sobre a natureza ou sobre a causa ecológica. Desde logo, é facilmente percetível a destruição da paisagem enquanto ativo ecológico e a perda direta de biodiversidade, quer por bombardeamento e destruição, quer como parte da estratégia militar de defesa ou ataque: em casos de guerra, são comuns as desflorestações como forma de aumentar a visibilidade ou condições de mobilidade do dispositivo bélico, ou como forma de tornar inabitáveis potenciais áreas de deserção, sobrevivência ou guerrilha.

Pensando no caso particular da Ucrânia – área muito biodiversa situada na rota migratória de dezenas de espécies de aves e que alberga dezenas de espécies endémicas, desde plantas superiores a invertebrados e mesmo vertebrados (como peixes, répteis e mamíferos), e ameaçadas (como o bisonte ou a doninha-marmoreada) –, este conflito armado terá com certeza impactos na sobrevivência de algumas populações que, sendo já de si vulneráveis, agravarão o estatuto de conservação das respetivas espécies.

Em situações de guerra, à destruição direta acresce a contaminação de extensas áreas (e, portanto, de solos férteis e de reservas de água) com metais pesados e químicos diversos, e eventualmente radiação, acentuando cicatrizes territoriais por longas décadas. Com a atenção das forças armadas e dos gabinetes de governação centrada nos conflitos, e com a maior facilidade de acesso a armamento, os movimentos predatórios sobre os recursos naturais aumentam também, como por exemplo a caça furtiva e o oportunista tráfico de animais ou madeira. No caso de conflitos em zonas tropicais, os movimentos de migração humana forçada levam à ocupação de áreas anteriormente desabitadas, e o elementar suprimento de necessidades básicas de uma população numerosa pode causar a sobre-exploração de recursos naturais, como madeira, plantas medicinais ou fauna silvestre.

Qualquer região em conflito vê agravados os impactos materiais e territoriais que se fazem sentir sobre os seus recursos naturais ao deixar de considerar prioritários as políticas de ambiente e conservação, o desinvestimento das áreas protegidas e o relaxamento na fiscalização de contraordenações e atentados ambientais. Desta forma, a recuperação económica, social e emocional torna-se ainda mais gravosa, sendo certo que a degradação dos recursos naturais, e das políticas que os defendem, são mais uma forma de acentuação da escassez e de agravamento da perda de produtividade e resiliência.

Os valores naturais e a paisagem de determinada região fazem ainda parte da identidade da sua comunidade, da sua memória coletiva, da sua herança cultural e estética. Privar essa comunidade da sua história natural é mais um severo atentado à sua dignidade coletiva e um incontornável e grave golpe em todo o significado cívico da reconstrução e regeneração (individual e societária), ao qual se deve estender também a nossa compreensão e solidariedade.

A guerra na Ucrânia surge num momento de clara aposta da União Europeia num ambiente de maior qualidade e na preservação da biodiversidade, tendo-lhes reconhecido o valor económico e social, mas até – e finalmente – a configuração como direito humano. O Acordo de Paris, o Pacto Ecológico Europeu e as demais agendas públicas de ambiente estão já a ser impactadas por mais esta crise, perdendo ímpeto e primazia face à militarização e defesa, por exemplo.

Se a história não nos ensinou ainda o suficiente sobre o deve e haver dos poderios, tentemos não esquecer a intemporal lição de que é no capital natural que se alicerçam as garantias de prosperidade de qualquer nação.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico