O que falta no jornalismo de ambiente?

As alterações climáticas ganharam ímpeto mediático nos últimos anos. Por altura do lançamento do novo projecto de cobertura climática e ambiental do PÚBLICO, o Azul falou com vários cientistas que fazem um balanço do que está em falta no jornalismo de ambiente.

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O Azul é um projecto do PÚBLICO sobre ambiente, crise climática e sustentabilidade Nelson Garrido

As alterações climáticas, causadas pela mão humana, estão em curso há décadas e a sua presença nas notícias tem estado a par e passo. Nos últimos anos, “tem havido mais interesse e as pessoas estarão mais atentas e conscientes de que estamos numa mudança do clima”, diz o especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos. Mas o que está em falta na cobertura jornalística de ambiente? Os cientistas referem que é preciso uma visão mais alargada e estratégica, mais seguimento e avaliação das decisões tomadas, ter noção das ameaças climáticas e do peso da educação ambiental e ainda a capacidade de pensar a longo prazo.

O Azul, um projecto do PÚBLICO, essencialmente digital, é apresentado nesta sexta-feira na Galeria da Biodiversidade, no Porto, às 18h. E resulta, precisamente, da constatação de que é preciso investir mais na agenda do ambiente, com enfoque nas alterações climáticas e nos seus impactos.

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Vera Moutinho

Para o professor catedrático Viriato Soromenho-Marques, o que falta não só ao jornalismo, mas também à sociedade, à política e à academia é “uma visão mais alargada e mais estratégica”. Não se pode pensar a energia separadamente da conservação da natureza, não se pode pensar mobilidade ou urbanismo separadamente das questões da agricultura. “Pensamos a economia sustentável separando-a da avaliação do estado do clima, do que é que acontece com a atmosfera, do nosso orçamento atmosférico, da capacidade de absorção dos gases de estufa que a atmosfera e os oceanos têm”, elenca, dizendo que não se pode ter uma visão afunilada. Sobretudo quando se fala da crise ambiental e climática.

O geofísico Miguel Miranda acredita que o que tem faltado na cobertura ambiental é o follow up, um seguimento das notícias e avaliação das decisões que são tomadas. No jornalismo, existem “perspectivas catastróficas que por vezes não se verificam e, às vezes, perspectivas anti-catastróficas que na verdade depois dão origem a situações graves”, diz o presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Nem uma situação nem outra são normalmente analisadas, aponta. “É altura de fazermos avaliações. É difícil de fazer, mas deve-se abrir o debate”, conclui Miguel Miranda.

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A este cenário junta-se uma “profunda incapacidade de pensar a longo prazo”, que Viriato Soromenho-Marques considera revoltante – até porque este futuro não está além de dez ou 20 anos. “As lágrimas sobre as gerações futuras já secaram”, nota. Para Filipe Duarte Santos, a melhor notícia que poderia receber relacionada com a crise climática era precisamente que existisse “um esforço que no fundo tem a ver com solidariedade intergeracional, com as gerações futuras”. Quase para assegurar a justiça climática, que também passa por garantir um futuro para os mais novos. “E que as pessoas estivessem disponíveis para esta transição energética que é necessária e que causa alguma disrupção.”

Filipe Duarte Santos diz que agora há mais informação sobre a crise climática, “mas muitas vezes as notícias são superficiais” e sente que muitas publicações científicas não chegam até ao público. E dá como exemplo o Livro Vermelho das Plantas Vasculares que, apesar de ter sido notícia e estar disponível online, não tem fundos para que possa ser publicado em livro e chegar a mais gente. Aqui, diz, a educação ambiental é fundamental.

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Também a bióloga marinha Ana Pêgo reconhece que a comunicação social tem um papel “importantíssimo para fazer chegar a mensagem e informação ao máximo de pessoas possível”. Daí que possam ser um veículo na transmissão de conhecimento, incluindo a dar a conhecer espécies que existem “à porta de casa”, mas que são desconhecidas por muitos.

É certo que há desafios. “O jornalista de ambiente compete com outras áreas que são mais chamativas e provavelmente têm mais recursos” e deve apostar muito na qualidade, na “auto-formação” aprendizagem. Viriato Soromenho-Marques, que acompanha de perto a cobertura climática e ambiental há quatro décadas, diagnostica que o jornalismo está a assistir a um fenómeno “complexo”, que se manifesta em más condições de trabalho e na falta de tempo, que prejudicam sobretudo o jornalismo de investigação.

A melhor notícia que poderia receber, diz, é que a guerra terminasse em breve e que não se “dividirá outra vez o mundo em duas partes”, o que implica trabalhar com países que ainda têm muitas emissões de gases com efeito de estufa, como a China, a Rússia, a Índia ou o Brasil. “Precisamos de trabalhar em conjunto porque não há dois planetas.”

Que temas estão em falta?

A bióloga Maria Amélia Martins-Loução acredita que uma das questões que tem sido menos abordada no jornalismo de ambiente são “os trabalhos de restauro de ecossistemas que estão degradados e as ameaças que existem a nível de biodiversidade”. Há zonas, como as dunas do Norte, que “estão degradadas e necessitam urgentemente de ser recuperadas para evitar que haja erosão dos solos e maior degradação”, diz. É sobretudo preciso estar atento e noticiar as ameaças que existem e que já têm impacto, sejam elas “do ponto de vista de utilização humana”, como os regadios, ou a intrusão de espécies invasoras.

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O especialista em alterações climáticas, Filipe Duarte Santos, diz que um dos temas que tem de ser mais falado é “a questão da água”. O que pode passar pelos diversos usos dados às águas residuais urbanas, pela seca, pela dessalinização e, sobretudo, pelo regadio. No caso do regadio por gravidade, diz, existe um “desperdício colossal” de água – e devia abolir-se a ideia de que existe “um conflito entre agricultura e ambiente”.

Ana Pêgo considera importante que as pessoas saibam “o percurso dos resíduos”. Sobre os assuntos que gostava de ver abordados na cobertura ambiental, fala das estações de tratamento de água residuais e do lixo deitado nas sanitas que continua a aparecer nas praias. E outro factor importante é não “pôr demasiada responsabilidade em cima do consumidor e das pessoas”. A bióloga marinha defende que deveriam ser as empresas e os governos a tomarem decisões, como a redução de plástico e dos microplásticos presentes em certos produtos. “Há produtos que têm microplásticos, como esfoliantes corporais ou faciais, que têm a agravante de as pessoas nem fazerem ideia que têm microplásticos”, aponta. “Devia ser responsabilidade das empresas tirá-los do mercado, não devia ser uma opção de escolha do consumidor.”

Além disso, Viriato Soromenho-Marques aponta que se fala no reordenamento do comércio internacional dos combustíveis “sem acautelar a questão fundamental: será que vamos conseguir cumprir os objectivos que nos propusemos para a neutralidade carbónica?” Para isso ser uma realidade, as políticas de mudança de comportamento são “extremamente importantes” e implicam “mudar a forma como encontramos resposta para as nossas necessidades”.

O professor catedrático de Filosofia considera que os jornais são o espelho da sociedade e que ainda têm um papel de “educadores”. Com a guerra ou com a pandemia, o resto pode ficar ofuscado. “É a mesma coisa que estarmos num navio e o navio está a caminho de um icebergue, e de repente há um incêndio a bordo e as pessoas só estão preocupadas a tentar apagar o incêndio a bordo” compara. O que resta fazer, então? “Temos de apagar o incêndio e temos de evitar o icebergue.”