A arte de preparar o anho pascal, a divina comezaina descrita por Eça de Queiroz
Queiroz Pinto cresceu com o cheiro a anho, mas faz também todas as receitas do romance centrado na Quinta de Tormes. O pastelão de salpicão e o frango com arroz de favas são outros troféus.
É com A Cidade e as Serras como guião que rumamos a Tormes, ao encontro do saboroso roteiro que devolveu a Jacinto o vigor físico e os prazeres da mesa. Na casa que hoje acolhe a Fundação Eça de Queiroz preserva-se com absoluto rigor toda a ambiência da época - e também a paisagem que se desenrola encosta abaixo até às águas do Douro não se terá alterado assim tanto.
De novo, a Quinta de Tormes tem um restaurante onde o jovem cozinheiro António Queiroz Pinto mima as receitas que ao longo do romance vão sendo referidos por Eça, tanto as da tradição local como aquelas que vinham de Lisboa ou Paris. Entre todas destaca-se o anho pascal, uma tradição que era já ancestral por aquelas terras e que Eça registou como a verdadeira comezaina.
“Quem nunca provou esse arroz de caçoula, este anho pascal candidamente assado, não pode realmente conhecer a especial bem-aventurança tão grosseira e tão divina, que nos tempos dos frades se chamava a comezaina”, como descreve o assado da tradição.
“E não é só na Páscoa, é a comida das festas. Sempre que há uma festa, nos aniversários, casamentos ou baptizados, toda a gente mata o anho”, apressam-se a contar Rosa e Nela, que preparam o almoço para o pessoal na cozinha da casa-museu enquanto o cozinheiro se deixa fotografar.
Mesmo ainda jovem, aos 28 anos António Queiroz Pinto é já um dos mais destacados guardiões desse legado culinário. Não só porque o serve de forma rigorosa e aprimorada no restaurante, mas também porque nasceu e cresceu numa casa de reconhecida fama e tradição na sua execução, a Pensão Borges, em Baião.
“Cresci com o cheiro ao anho. Vivíamos na área onde agora é a cozinha e todos os domingos, dias de feira, festas e feriados os fornos enchiam-se de anhos”, recorda, dando conta que de início nem sentia grande atracção pelos fogões. “Detestava a cozinha. Mesmo no tempo da escola, gostava era de ir para a sala, do contacto com os clientes.” Foi o pai que o aconselhou a ir para hotelaria, dizendo que para ser bom na sala teria que conhecer os fundamentos da cozinha. E foi aí que se apaixonou sem remédio pela arte de cozinhar.
Munido do conhecimento e ferramentas da técnica, o receituário tradicional é religiosamente respeitado no seu restaurante, procurando as referências da obra do escritor. “Não só as que eram desta região, mas também a perdiz à Convento de Alcântara, o bacalhau à Alencar, o pato confitado ou o bife à inglesa”, enumera.
Quanto ao anho, assado em forno de lenha, diz que não há qualquer truque ou receita para que fique tão bom. “É o prato da região e ainda bem que o Eça fala nele. Em casa as pessoas ainda matam e sangram para os dias de celebração, mas isto é como dizia o abade de Priscos, eu posso dar a receita, mas o que conta são as mãos e a experiência.”
É assado por cima do alguidar do arroz, sobre uma grelha ou paus de loureiro, para que a gordura e as escorrências do “picado” se infiltrem e transmitam o sabor ao arroz, que é feito numa calda forte com base nas carnes do cozido. Por tradição, há também quem use os sucos e carnes da cabeça do anho.
A par do assado com arroz do forno, que tem sempre ao fim-de-semana – para os outros dias é preciso encomenda –, procura ter também o “verde” ou “bazulaque”, que é uma espécie de açorda com o sangue e as miudezas do animal. “Era o que se servia logo de manhã na casa dos noivos aos convidados dos casamentos para que aguentassem a caminhada até à igreja”, descreve, explicando que quando o tem é servido como entrada e não entra na conta. “É oferta, um presente tradicional.”
O assado começa três dias antes, envolvendo o animal com o “picado”, uma pasta com banha, alho, salsa, pimentão, pimenta e vinho branco, de Avesso da região. “Há quem ponha também hortelã, mas eu não uso”, avança o chef, dizendo que tudo deve ser bem picado e triturado para se envolver com a carne do bichinho.
Importante é que seja ainda um animal de leite. “Não importa o peso, tem é que ser mesmo mamão, que não ande ainda no pasto ou no monte para não trazer aquele sabor agreste”, explica. Outra especificidade está no calor do forno, que tem que ser adaptado à quantidade de anhos que se vai colocar. Quanto mais preenchido o forno, mais intenso deve ser o calor.
Costuma acender o forno às 8h, de preferência recheado com lenha de carvalho, aí pelas 10h retiram-se os detritos da lenha, limpa-se e deixa-se alguma brasa. Depois é pôr o alguidar com o arroz e o anho por cima e esperar umas duas horas. “Num forno com convector temos a informação da temperatura, nestes é pôr lá dentro e no final ver como saiu.”
O sabor é mesmo divinal, é preciso usar os dedos para apreciar e saborear na plenitude as costelinhas. As carnes macias e suculentas e a desligarem-se dos ossos quase se desfazem na boca num sabor ao mesmo tempo rústico e delicado. Come-se mesmo sem vontade. Pura gulodice!
Mas nem só do anho se alimenta a carta do restaurante. Coisas como o pastelão de salpicão ou o frango com arroz de favas trazem igualmente a memória de outros sabores divinais. A carta onde não faltam os peixinhos da horta, bolinhos de bacalhau e o presunto de cura local como entradas oferece também todas as outras receitas que Eça de Queiroz refere em A Cidade e as Serras, sem esquecer o caldo de galinha ou a carne de porco em vinha d’alhos.
Também os vinhos da produção da quinta, com destaque para os da casta Avesso, estão na lista, com oferta que se estende por todas as outras regiões. Nas sobremesas figuram o toucinho-do-céu e o creme de água queimado, mas há também umas cavacas de Resende que são ainda feitas em forno a lenha que é pecado deixar escapar.
E se Eça ou Jacinto cá pudessem voltar, o que os poderia mesmo surpreender é a convidativa e acolhedora esplanada montada sobre a relva com vista para o rio. Sim, porque até a subida desde a estação do comboio junto ao Douro pode igualmente ser feita a pé, já que existe devidamente cuidado e sinalizado o Trilho de Jacinto, que nos leva directamente à Casa de Tormes. São apenas 3,4km, mas o percurso é íngreme e há-de demorar perto de uma hora. Mas compensa!