Dia 24 de março de 2022
Três gerações em democracia liberal ignoraram o apelo trágico de um povo a quem foi retirado o direito de dirigir o seu destino.
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A 24 de março de 2022 passou um mês sobre a agressão assassina do exército de Putin à Ucrânia. Comemoraram-se os 60 anos do movimento estudantil de 1962, com uma concentração de intervenientes junto ao Parlamento, e comemorou-se ainda o dia em que a vida em democracia se tornou mais longa do que a vida em ditadura, com discursos alusivos, antecipando (já!) as comemorações dos 50 anos do 25 de abril de 1974. Enquanto isso, as federações académicas de estudantes do ensino superior manifestaram-se mais uma vez contra o valor das propinas e a favor de uma ação social mais eficaz. Legítimo, sem dúvida.
Nesse dia, o presidente Zelensky apelou a manifestações à escala global a favor da paz.
No dia 24 de março passado, três gerações saíram à rua, por motivos diferentes. Mas, oficialmente, nenhum dos motivos respondeu ao apelo do presidente Zelensky! Três gerações: a “geração dos idosos mais bem preparados de sempre”, sobretudo pelas vivências da luta contra a ditadura e contra a criminosa guerra colonial a que deram corpo; a geração seguinte, que viveu já maioritariamente em democracia, e que teve o privilégio de assistir ao renascer de uma nação, liberta da ditadura quase medieval, e ao progresso traduzido em melhorias imensas de vários índices; e, por último, a geração mais recente, a chamada “geração mais bem preparada de sempre” (GMBPDS), criada em “berço de ouro”, ensinada em escolas de facilitismo chocante, desresponsabilizada pelo seu alheamento perante o saber, a cultura e a escola, entorpecida pelas redes sociais e pelos cânticos de embalar da transição digital, do consumo infinito e outros progressos que tais, sobretudo propalados pelos fazedores de sonhos das grandes tecnológicas.
Três gerações em democracia liberal ignoraram o apelo trágico de um povo a quem foi retirado o direito de dirigir o seu destino. Manifestações a favor da paz, contra uma guerra injusta e cruel, de consequências dramáticas para todos os povos, são ignoradas pela apatia e passividade submissa de uma geração que aparentemente se desinteressa do seu futuro coletivo. As imagens a que assistimos em direto, de destruição maciça de cidades e populações, não são suficientes para despertar a apatia da GMBPD, de onde sairão os futuros líderes políticos, empresariais e culturais. Entregue à vontade das lideranças políticas e militares, subjugada aos interesses dos jogos geoestratégicos e das indústrias de armamento, esta geração não percebeu ainda que vai ter um futuro de nações com armamentos cada vez mais destrutivos, num clima de ameaça permanente, para os quais vão ser canalizadas percentagens significativas das riquezas nacionais. Não percebem que estas democracias são frágeis, como demonstram os sinais cada vez mais evidentes de crescimento de extremismos violentos, da corrupção generalizada que consegue, à custa de dinheiro e de legislação favorável, emperrar os sistemas judiciais e das várias cumplicidades com os regimes autocráticos com que negoceiam sem qualquer escrúpulo.
Terá esta apatia atenuantes? Talvez. De facto, esta é uma geração que genericamente (e passe o exagero) nunca teve que enfrentar verdadeiros desafios. Só agora os conhece e, por isso, anda perdida por ter que enfrentar as dificuldades criadas pelos que hipotecaram o seu futuro. É uma geração com menos oportunidades, condenada a viver até tarde em empregos precários e mal remunerados. Sendo capaz de se entregar generosamente a ações solidárias, não tem porém identidade coletiva e, por isso, é incapaz de se revoltar contra os que endividaram o seu futuro, contra os corruptos que fintam os sistemas judicias ou contra o lixo tóxico que prolifera nas redes sociais. Se não desperta, como vai poder enfrentar a onda de choque inevitável, resultado desta guerra que poderá ter uma escalada para níveis impensáveis?
Temos assistido a uma surpreendente variedade de reações a esta tragédia. Há os “contextualizadores” e “predicadores”, vítimas de uma alegada perseguição dos “hegemónicos”, os “super-pragmáticos”, que veem nela uma oportunidade de resolver as carências de mão-de-obra e até, de forma inesperada, uma promissora recuperação do negócio turístico. Para culminar, não tardará a indústria de guerra a abocanhar o aumento das percentagens dos PIB nacionais para a corrida aos armamentos e, é claro, os abutres da reconstrução que não perderão esta oportunidade de especular e multiplicar exponencialmente os seus lucros.
Enquanto isto, há dois povos mártires, diria, eternamente mártires: o ucraniano, obviamente, e o triste povo russo vítima de todas as autocracias - czarista, comunista, nazi e, agora, fascista.
Dos que se podia exigir poder de mediação não há nada a esperar. A ONU, completamente ineficaz, com um secretário-geral que hipoteca o seu muito respeitável passado de humanista, mas sem qualquer coragem para intervir ou, pelo menos, denunciar a inépcia do organismo que dirige. Das igrejas nada há a esperar, a não ser o conforto que o culto eventualmente possa dar às vidas ameaçadas. A igreja ortodoxa russa, completamente submetida ao poder fascista, vê a guerra como expressão de uma vontade transcendental! A igreja católica é liderada por um Papa piedoso, de dimensão humanista fora de qualquer dúvida, mas que não consegue vencer a hipocrisia ostensiva das cúpulas sumptuosas do Vaticano, contrária a todos os princípios do cristianismo puro. A expressão comovente, de velho cansado, do Papa Francisco, impede-o de estar onde certamente desejaria e onde poderia liderar uma missão de paz. Da China, nada a esperar. A sua vitória está garantida. Basta manter a sua ambiguidade, jogando em todos os tabuleiros.
Não há manifestações de pacifistas e, quando as há, têm pouca expressão, ou a expressão da hipocrisia ou do oportunismo despudorado.
Tristes dias os que se vivem, e mais tristes os que virão.