O pivot europeu

Para o especialista em Ciência Política e Relações Internacionais Carlos Gaspar, a invasão da Ucrânia pela Rússia “torna imperativa a europeização da NATO”. Ou seja, “é preciso que a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e as outras potências europeias passem a uma contribuição equivalente à dos EUA” na Aliança Atlântica.

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Preparação das bandeiras dos países participantes do Conselho Europeu, em Bruxelas OLIVIER HOSLET

Desde o dia 24 de Fevereiro, a Rússia e a Ucrânia estão em guerra — a invasão russa é um acto típico de agressão de uma grande potência imperialista contra um Estado vizinho que não representa qualquer ameaça à sua segurança; a resistência ucraniana é um acto de legítima defesa de um Estado soberano para garantir a sua integridade e independência.

A Guerra da Ucrânia marca o regresso da guerra entre Estados à Europa, pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial. A Guerra Fria na Europa teve momentos críticos, mas nem os Estados Unidos nem a União Soviética quiseram correr o risco de uma nova guerra hegemónica. A crise de Berlim, em 1948, revela os limites da luta pelo poder entre as duas superpotências na Europa; em 1956, a passividade da NATO perante a invasão soviética da Hungria confirma que os “irmãos inimigos” querem consolidar a divisão da Europa entre as duas grandes potências nucleares; em 1968, na invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia repete-se o mesmo cenário. Nos vários pós-Guerra Fria, as guerras de secessão jugoslavas não são guerras interestatais, e as intervenções da Rússia na Geórgia, em 2008, e na Ucrânia, em 2014, são acções punitivas breves, que não têm uma resposta armada.

A invasão russa da Ucrânia é uma ameaça directa à segurança da Europa como um todo. Pela primeira vez desde 1939, as democracias europeias têm de responder a uma guerra dentro das fronteiras da Europa: a resposta europeia, surpreendentemente rápida e decisiva, marca uma viragem política sem precedentes desde o fim da Guerra Fria.

A unidade europeia

No dia seguinte à invasão, a União Europeia (UE) está em condições de anunciar a primeira leva de sanções económicas e financeiras contra a Rússia, que são seguidas pelos EUA, pela Grã-Bretanha, pelo Canadá e pelos restantes membros europeus da NATO que não pertencem à UE, assim como pela Suíça, para sublinhar a unidade das democracias ocidentais, e também pelo Japão, pela Coreia do Sul, pela Austrália e pela Nova Zelândia, para sublinhar a unidade das democracias pluralistas.

Essa decisão rápida é possível porque as sanções foram antecipadamente negociadas entre os Estados Unidos e a União Europeia: Washington quis que Bruxelas fosse a primeira a anunciar as sanções. A unidade europeia mantém-se nas semanas seguintes, em que a UE e os aliados ocidentais aprovam novas levas de sanções contra a Rússia.

No dia seguinte à invasão, a Grã-Bretanha, a França e a Albânia estão ao lado dos EUA e da maioria dos membros do Conselho de Segurança para votar a favor da resolução que condena a agressão à Ucrânia, prontamente vetada pela Rússia. Perante o impasse, os EUA e a Albânia apresentam uma resolução para o Conselho de Segurança poder convocar de urgência a Assembleia Geral, um procedimento excepcional em que os membros permanentes não têm poder de veto. Na sessão especial da Assembleia Geral, todos os Estados europeus (e dois terços dos Estados-membros das Nações Unidas) votam a favor da condenação da agressão da Rússia contra a Ucrânia.

Nos dias seguintes à invasão, a Alemanha, a Polónia, a República Checa, a Roménia e as Repúblicas bálticas, a França, a Holanda, a Espanha e Portugal, a Grécia, a Noruega e a Dinamarca, tal como a Suécia e a Finlândia, que não são membros da NATO, e a própria União Europeia, juntam-se aos Estados Unidos, ao Canadá, à Grã-Bretanha e à Turquia e passam a enviar armas, incluindo sistemas avançados de mísseis antiaéreos e antitanque, para garantir a capacidade de defesa das forças militares da Ucrânia contra as forças militares da Rússia, que mobiliza um exército de 190 mil soldados, com sistemas de mísseis estratégicos e de cruzeiro com capacidade nuclear, para garantir, sem sucesso, uma vitória rápida da invasão.

A revolução alemã

O chanceler Olaf Scholz é quem encontra as palavras certas para responder à guerra da Ucrânia. No Bundestag, três dias depois da invasão, Scholz considera a agressão da Rússia como uma “mudança de época” (Zeitenwende) e declara que a Alemanha está preparada para fazer “o que for necessário para garantir a paz na Europa".

No seu discurso, o chanceler social-democrata refere os pontos principais da viragem alemã: o envio de armas para a Ucrânia e as sanções económicas contra a Rússia; o reforço das tropas alemãs no flanco oriental da NATO — nomeadamente na Lituânia, onde a Alemanha comanda as forças de intervenção aliadas, e na Roménia — para impedir o alargamento do conflito; o reforço permanente das capacidades de defesa alemãs, com a criação de um fundo especial para as Forças Armadas, as Bundeswehr; e a revisão dos fundamentos da política externa da República Federal.

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Tanque Leopard, das Bundeswehr, durante uma demonstração em 2019, em Munster, Alemanha Morris MacMatzen/Getty Images

Scholz anuncia mudanças fundamentais nas políticas energética e de defesa. O chanceler social-democrata cancela o projecto do Nord Stream II, símbolo e instrumento político da dependência energética da Alemanha em relação à Rússia, que é a origem de mais de 50% do gás consumido na Alemanha. Nessas condições, a Alemanha exclui o fornecimento de gás das sanções contra a Rússia, mas compromete-se a rever as políticas energéticas alemãs para reduzir a dependência do gás russo. Paralelamente, Scholz anuncia a duplicação dos orçamentos de defesa da República Federal para garantir o cumprimento dos compromissos assumidos na NATO com efeito imediato: a Alemanha passa a ter o terceiro maior orçamento de defesa, a seguir aos Estados Unidos e à China e à frente da Rússia, da Grã-Bretanha e da França.

Mais importante, Berlim muda a sua política externa. Scholz ultrapassa a ambiguidade da estratégia alemã que procurava conciliar a dependência energética da Rússia e o alinhamento com os Estados Unidos na NATO e renuncia ao dogma da indivisibilidade da segurança europeia, que defende que só pode haver segurança na Europa com a integração da Rússia numa comunidade euro-atlântica. A Alemanha consolida a sua posição central na União Europeia e na NATO, ao mesmo tempo que desiste da sua relação especial com a Rússia: Olaf Scholz, o mais recente Chanceler social-democrata, marca o fim da Ostpolitik iniciada por Willy Brandt, o primeiro Chanceler social-democrata.

A europeização da NATO

Nas vésperas das três cimeiras do G7, na NATO e da União Europeia, que reúnem em Bruxelas os dirigentes das principais democracias industriais, incluindo o Presidente dos Estados Unidos, os dirigentes da União Europeia aprovam a Bússola Estratégica, o documento que define as suas prioridades no domínio da segurança e da defesa.

A Bússola Estratégica toma nota do “regresso da guerra à Europa”, condena a agressão da Rússia e qualifica as suas acções como uma ameaça directa e de longo prazo à segurança europeia; reitera que as suas contribuições no domínio da segurança são “complementares da NATO"; reconhece que a NATO é a “fundação da defesa colectiva” dos membros europeus da Aliança Atlântica, entre os quais a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França; e define como meta dos seus esforços militares para os próximos anos a criação de uma força de intervenção rápida com cinco mil soldados. A força de intervenção da NATO, que se está a concentrar na Roménia sob comando da França, tem 40 mil soldados, incluindo forças portuguesas.

Pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, a defesa europeia volta a ser a prioridade das prioridades da política europeia, como decorre das decisões da Alemanha, que não podem deixar de ser seguidas pela França, pela Grã-Bretanha e pelo conjunto dos Estados-membros da União Europeia e da NATO. Porém, nenhum responsável europeu deve duvidar que essa nova prioridade significa o primado da NATO na balança europeia: a Aliança Atlântica é o único quadro em que os Estados Unidos podem continuar a assegurar a defesa europeia, como garantes da dissuasão estratégica nuclear perante a Rússia; a Aliança Atlântica é o único quadro em que a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França podem concertar as estratégias comuns indispensáveis para garantir a defesa colectiva dos aliados e conter a ameaça da Rússia; e a NATO é o único quadro em que se pode construir um exército europeu digno desse nome, por oposição aos exércitos europeus imaginários propostos ao longo dos últimos 30 anos.

A europeização da NATO não significa, obviamente, integrar a União Europeia na Aliança Atlântica — a melhor forma de destruir os dois pilares da comunidade transatlântica. A europeização da NATO significa que a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e as outras potências europeias passam a ter uma contribuição equivalente à dos EUA no quadro da NATO e as capacidades convencionais credíveis para conter uma agressão não nuclear da Rússia contra um aliado europeu. Essa mudança, tantas vezes adiada, é urgente: os EUA voltaram a ter, pela primeira vez desde o fim da Guerra Fria, mais de 100 mil soldados na Europa, mas a sua prioridade é, e vai continuar a ser, a contenção da ascensão da China no Indo-Pacífico.

A invasão da Ucrânia pela Rússia torna imperativa a europeização da NATO, que completa o pivot europeu quando reforça, simultaneamente, a aliança das democracias ocidentais e a unidade das democracias europeias empenhadas em conter a ameaça das potências revisionistas à segurança europeia e internacional.


Este artigo faz parte do projecto A Europa que Queremos, apoiado pela União Europeia


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