Rosalía: a transformação como sinónimo de liberdade

Já pouco sobra do flamenco que foi o primeiro impulso da cantora catalã. Motomami, o seu terceiro álbum, viaja pela fama e pela cultura pop japonesa, mas é acima de tudo uma declaração de liberdade.

Foto

Não é de agora que Rosalía se apresenta ao mundo com uma certeza imperturbável em relação à música que pretende explorar. Já aos 23 anos, quando o Ípsilon a encontrou em Barcelona, por alturas do lançamento de Los Ángeles e antes de se estrear em palcos portugueses no Theatro Circo, em Braga, era evidente que a sua epifania adolescente ao escutar a voz indomada de Camarón de la Isla a invadir um parque da cidade (a partir das colunas de um carro estacionado, de portas escancaradas e volume exagerado), não lhe oferecera um molde ao qual se devia ajustar. Dessas mesmas colunas de onde saltara Camarón, vinham sons de hip-hop e reggaetón, música partilhada por prazer e sem ser engaiolada em géneros.

Foto

Enquanto os meios espanhóis anunciavam em parangonas a chegada de uma “revolucionária do flamenco”, Rosalía dizia-nos que apesar da formação de flamenco mais clássica que perseguira depois desse momento definidor, esse não era, afinal, o seu perfil. “Não sou uma cantaora no sentido clássico da palavra, porque não venho de uma família de dinastia flamenca, nem sequer se ouvia flamenco em minha casa e, por consequência, aquilo que faço é inevitavelmente diferente.” Essa diferença materializava-se então num primeiro álbum gravado com a guitarra acústica muito pouco ortodoxa de Raül “Refree” — que antes trabalhara com Sílvia Pérez Cruz e Rocío Márquez, e actualmente troca as voltas ao fado ao lado de Lina —, um disco preparado enquanto escutavam, com idêntico entusiasmo, Kendrick Lamar ou Niña de los Peines, Kanye West ou Lole y Manuel. Daí que o futuro de Rosalía começasse a entrever-se menos na arrepiante versão de I see a darkness (original de Bonnie “Prince” Billy) com que fechava Los Ángeles, e mais na sua colaboração com o rapper C. Tangana em Antes de morirme (com quem manteve uma relação que agora é procurada em cada um dos seus versos).

A certeza do caminho que queria percorrer era já uma evidência. Daí que seja impossível não pensar que Rosalía sabe muito bem o que está a fazer quando coloca agora Saoko na pole position de Motomami. Não é mera cartada de alinhamento arrancar o seu terceiro álbum com um tema que parece tomar-nos o corpo a partir de um jogo de sintetizador e beat que são um verdadeiro shot de adrenalina musical, talvez inspirado nos momentos mais robustos dos Neptunes/N.E.R.D.(Pharrell Williams e Chad Hugo andam, de facto, por este disco, mas esconderam-se noutros temas). É logo nesses primeiros minutos de Motomami, de facto, que a cantora catalã nos atira com o seu manifesto: “Yo soy mía, yo me transformo / Una mariposa, yo me transformo / (...) Me contradigo, yo me transformo / Soy to’a la’ cosa’, yo me transformo”. E está tudo aqui — a transformação como natureza, a contradição como direito e consequência assumida, o desejo de ser tudo como voragem criativa, a autodeterminação como estrutura.

Foto
Rosalía aparece como mulher que reclama sem pejo a sua sexualidade e a expõe nos termos em que decide fazê-lo

E assim, quando um piano jazzístico a soltar notas em desequilíbrio e em atropelo irrompe por Saoko, já está tudo explicado. Tal como ajuda a explicar que, olhando em retrospectiva, se percebe com nitidez o quanto cada álbum de Rosalía reflecte não apenas o ponto da sua escalada musical, mas também a temática que coloca no centro: se Los Ángeles era um disco cru, enredado em cantos habitados pela morte, El Mal Querer baralhava as coordenadas do flamenco, libertando-se do género (e cruzando-o com r&b e electrónica, numa aproximação a uma pop global), ao mesmo tempo que a cantora narrava a história de um mulher aprisionada pelo marido devido ao ciúme e se ia soltando dessas amarras para reclamar-se como única dona do seu destino.

O mundo como uma noz

Agora, em Motomami, muito mais do que nos álbuns anteriores, Rosalía faz aquilo que lhe apetece, dá constantes guinadas estilísticas e carrega nessa transformação constante que nos sacode enquanto ouvintes de um registo para outro, sem aviso, aproximando-se tanto de M.I.A. quanto de Édith Piaf. Mas se não demoramos a identificar esse movimento de explosão de tema para tema, como se cada nova canção procurasse fugir da anterior, à medida que o álbum avança percebemos que, nalguns casos, Rosalía leva ainda mais longe essa ideia, construindo o casulo e saindo lá de dentro no decurso de uma mesma composição. Exemplo mais flagrante é o de CUUUUuuuuuute. Começa claramente em terreno M.I.A., a reboque de um ritmo nervoso e uma voz que remete para as canções de Maya Arulpragasam, para logo a seguir travar a fundo e Rosalía emergir como cantora popular espanhola (algures nos arredores de Sílvia Pérez Cruz), regressando depois ao ponto de partida.

CUUUUuuuuuute será o tema em que Rosalía mais se metamorfoseia à medida que a canção avança, mas de forma muito mais subtil encontramos também um pouco disso na magnífica balada Hentai (com o surpreendente dedo de Pharrell e Hugo), sempre de uma desarmante e simples construção r&b, voz e piano numa relação em que a termperatura corporal dispara como só acontece em canções de amor, ainda que aqui a cantora suba a parada e alague de desejo o seu canto — “Te quiero ride como a mi bike / (...) Bebé, te quiero comer ya, ya / Ya te quiero hacer hentai”, aludindo aos animes ou mangas de conteúdo sexual ou pornográfico. A transformação aí, passa pela carnalidade que o tema vai ganhando pelo caminho, de um registo que começa pela doçura e fragilidade e se torna mais libidinoso quando entram em cena programações rítmicas que poderiam ter sido esculpidas pela cirúrgica criatividade desossada de Trent Reznor. Rosalía aparece então como mulher que reclama sem pejo a sua sexualidade e a expõe nos termos em que decide fazê-lo — não é uma questão de se conformar a um estereótipo, mas sim de direito integral à sua identidade.

Em entrevista à revista i-D, explicaria que crucial no seu trajecto até chegar a Motomami — durante o qual alimentou com uma infalível cadência os seus admiradores graças a uma linhagem de singles arreigadamente pop, entre os quais Con altura, Dio$ no$ libre del dinero, Milionària, Aute cuture, A palé, Juro que ou Dolerme, todos fora do alinhamento do álbum — foi o encontro em Nova Iorque com Frank Ocean. “Houve uma altura em que ele disse algo que nunca esqueci”, contou a cantora, apontando para uma pista que lhe permitiu abrir as portas para um maior acesso à sua vida através das canções. “Quando escrevi o primeiro tema do álbum, Saoko, lembrei-me disso. E pensei comigo, ‘o Frank disse-me que abrisse o mundo como uma noz’. O que é bonito é que pode significar o que precisarmos que signifique. E para mim, fez sentido.”

Fama e Japão

Motomami é frequentemente desconcertante e altamente sedutor nesta clara afirmação de querer ser tudo e não abdicar dessa liberdade para o reafirmar a cada passo. E é isso que explica os saltos que Rosalía imprime ao álbum, saltando do tal Saoko com pinceladas N.E.R.D. para Candy, desaceleração para uma pop downtempo global, com que poderíamos esbarrar numa Beyoncé ou numa Riahnna, voz derramada sobre acordes e arpejos em teclados tão líquidos que quase se desfazem em fundo. É isso que explica passarmos de um Motomami que elimina qualquer distância de segurança em relação a M.I.A., passa depois de raspão pelo esquecível reggaeton de Diablo, e acaba a aterrar num Delirio de grandeza que é um inesperado e sublime bolero que Rosalía aborda como se vestisse a pele de uma Édith Piaf largada num karaoke de Havana (os metais, propositadamente atirados para o fundo, parecem sugerir que canta por cima de um gira-discos onde gira um álbum dos anos 50).

“Não consigo pensar em fazer música de uma maneira certa ou errada”, justificou ao New York Times. “Para mim, a criatividade não tem que ver com isso — não é acerca de próprio ou impróprio, correcto ou incorrecto. Está para além disso. Soa livre ou não soa livre? Soa a algo que tem urgência e nasce da necessidade ou não?” Na verdade, acrescentaria, a sua principal preocupação é procurar ouvir algo que nunca tenha antes escutado — “é sempre essa a intenção”.

No caso, significa isso que quanto mais se peneira Motomami, mais se torna evidente que as explorações de modernidade aplicadas ao flamenco em que Los Ángeles assentava e El Mal Querer abordava com uma imensa inventividade e ousadia, agora quase desaparecem de cena. Sobra Bulerías, fazendo questão de não ser engolido por tudo o resto, mas esta excelente variação, em que a voz está em Sevilha mas a percussão mais facilmente em Bogotá, musicalidade escolhida a dedo para Rosalía cantar que de nada se arrepende, que nada teve de fazer contrariada, e que ainda que haja maledicência lançada sobre as costas (presume-se que de quem digere mal este flamenco sem medo de se cantar com autotune e ligado à electricidade), de cada punhalada a cantora retira a raiva que ferve a sua voz. E sobre um manto de palmas, voo vocal em melismas “autotúnicos”, volta a dizer-nos “Sou muito minha”, para logo depois pedir bênção divina para a cantora de flamenco Ninã Pastori, a rapper Lil’ Kim, a estrela do reggaetón Tego Calderón e a surpreendente experimentalista pop M.I.A., acrescentando ainda a sua família e a liberdade à prece, como se fizesse questão de desenhar para os detractores uma cartografia do flamenco que existe em si.

Bulerías, a canção à qual cabe a defesa isolada desta visão muito pessoal de um flamenco contemporâneo sem medo de chocar tradicionalistas, custa, no entanto, a sobressair no alinhamento de Motomami, entalada entre o certeiro single La fama, dueto com The Weeknd cantado sobre uma bachata dominicana — e em que Rosalía dá voz à fama, essa mala amante, demasiado traiçoeira e mais interessada em one night stands e menos em relações estáveis, inspirada por letras de Rubén Blades e Patti Smith, segundo disse à Rolling Stone — e o assumido reggaetón de Chicken teriyaki. La fama e Chicken teriyaki, na verdade, encarnam as duas temáticas que se estendem (paralelas ao veio central da transformação) pelo terceiro álbum da cantora: a relação com a efémera fama e a atracção pela cultura pop japonesa. As duas juntam-se no tema final, Sakura, uma falsa actuação ao vivo (com recurso a uma gravação da digressão de El Mal Querer), e em que uma Rosalía mais clássica diz a si mesma “Flor de sakura / ser una popstar / nunca te dura”.

O curioso é que praticamente abandonando o flamenco e reforçando uma postura de pop global que não se demora por Espanha mais do que uma visita a casa dos pais ou um fim-de-semana em airbnb, Rosalía não assina também aquilo que chegou a sugerir de mergulhar a fundo no mundo reggaetón. Na verdade, aquilo que se escuta em Motomami é mesmo a liberdade e o desejo cumprido de querer ser tudo ao mesmo tempo. E que só não a eleva a uma obra-prima não pelo defeito de contradição, mas por um par de temas, mais tímidos na sua transformação, trair o gesto e cortar, por vezes, o efeito de desconcerto que é a arma mais sedutora e conseguida de Motomami. Mas, como disse à i-D, aos poucos vai mostrar quem é, uma vez que ainda não deixou vir à tona tudo aquilo de que é feita — “Não tenho pressa de que as pessoas me compreendam como música”, disse. Tudo bem, temos tempo.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários