Luis Miguel Cintra recorda Jorge Silva Melo (1948-2022): “Ele empurrava-me para a frente para fazer”
A determinada altura das suas vidas, os dois actores e encenadores, amigos desde os tempos do Liceu Camões e co-fundadores do Teatro da Cornucópia, seguiram caminhos diferentes. Mas esses tempos iniciais em que inventaram o futuro do teatro português permanecem como elo inquebrável.
Jorge Silva Melo foi “muito importante” para Luis Miguel Cintra desde o princípio da sua vida artística. “Conhecemo-nos no Liceu Camões, em Lisboa, depois fomos os dois para Românicas, ele andou sempre um ano à frente de mim”, recorda o actor ao PÚBLICO numa conversa telefónica após a notícia da morte do fundador dos Artistas Unidos. Foi nessa época que se criou, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, um grupo que seria seminal para os dois. “Dele fazia parte o Jorge [Silva Melo], como elemento agregador de muitas outras pessoas. E foram eles que me empurraram para fazer a primeira encenação. Era o Anfitrião, de António José da Silva. O Jorge fazia o Júpiter, a Eduarda Dionísio fazia a Alcmena, por quem o Júpiter está apaixonado. Enfim, isso teve muita importância. Foi um gesto fundador do que depois viria a tornar-se no Teatro da Cornucópia”, acrescenta o fundador da companhia de teatro lisboeta que nasceu em 1973 e se extinguiu em 2016.
Ainda antes disso, os dois amigos partiram para Inglaterra. Jorge Silva Melo foi estudar cinema, “que era aquilo que lhe interessava”, em Londres, e Luis Miguel Cintra foi estudar teatro em Bristol. “Estávamos sempre muito em contacto um com o outro. E com a ideia de virmos a fazer em Portugal alguma coisa nas artes. Ele veio para Portugal mais cedo do que eu e começou a colaborar com Os Bonecreiros, um grupo de teatro independente, e começou a trabalhar muito como assistente de realização. Teve uma importância fundamental no chamado Cinema Novo Português.”
Luis Miguel Cintra, lembra por exemplo, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, curta-metragem realizada em 1972 por João César Monteiro, em que os dois foram actores e Jorge Silva Melo assumiu ainda as funções de assistente de realização e director de produção. “Creio que se não tivesse sido ele, não teria havido este filme. Tornou-se um grande companheiro do Paulo Rocha, mas também nos projectos do Alberto Seixas Santos — num filme bonitíssimo, Brandos Costumes — e até do António-Pedro Vasconcelos.”
Quando o actor e encenador estava a acabar o seu curso em Inglaterra, recebeu uma mensagem de Jorge Silva Melo em que este lhe dizia: “Há condições para começarmos uma companhia. Se quiseres, vem.” E Luis Miguel Cintra regressou a Lisboa para fundar o Teatro da Cornucópia com ele.
“Atrasámo-nos um bocado no arranque da companhia, mas teve uma actividade de facto formidável, vista assim à distância nesse ano antes do 25 de Abril; no imediatamente a seguir ao 25 de Abril e depois até ele se ir embora, no princípio dos anos 80.”
Esse lançamento foi muito importante para Luis Miguel Cintra, pois, como ele próprio diz ao PÚBLICO, funcionava por empurrão. “Tinha vontade de fazer coisas, não tinha coragem de as fazer sozinho e ele empurrava-me para a frente para fazer. Ainda lhe reconheci depois toda a vida esta função, ele serviu de empurrão a muita gente que ele achava capaz de ter valor e de fazer coisas.”
O encenador lembra que, na área do cinema, Jorge Silva Melo continuou a fazê-lo com gente muito mais nova, como João Canijo e Pedro Costa, realizadores a quem ajudou muito.
“Enfim, muita coisa em que ele funcionou dessa maneira e eu estou-lhe muito grato por isso. Depois cada um seguiu o seu caminho”, conta. Jorge Silva Melo foi para Berlim estagiar com Peter Stein, juntamente com a cenógrafa e figurinista Cristina Reis que se tinha entretanto ligado à companhia.
“Eu fiquei e fui desenvolvendo separadamente a Cornucópia e a direcção da companhia. Também houve dificuldade em a gente se entender os dois como directores da Cornucópia. Porque creio que somos, éramos, duas personalidades muito fortes no mesmo campo. Mas fizemos coisas muito bonitas e foi o ponto de partida para a minha vida toda. Depois foi tudo diferente. Mas creio que conseguimos, cada um de sua maneira, não sobrepor o trabalho dos Artistas Unidos ao trabalho da Cornucópia, e cada um ter um campo concreto em que estas duas companhias se completavam em defesa de um teatro com expressão artística e com uma missão inovadora e uma missão política que agora já não reconhecemos em quase ninguém.”