Os que nascemos depois

Como se diz no fim do Lear, “we that are young (ou já não tão novos), shall never see so much, nor live so long (tão pouco, afinal)”. Mas temos muito para contar, enquanto nos lembrarmos.

Foto
Jorge Silva Melo em 2011 ENRIC VIVES-RUBIO

1.

O Jorge Silva Melo é que sabia escrever textos destes, aproveitando a violência da morte para cantar, provisoriamente, a vida interrompida. Não há quem possa agora escrever o dele, ou melhor: temos de ser todos (os que, como no poema de Brecht, viemos depois – mesmo quem por acidente até nasceu primeiro). Para entender tão grande perda, basta lembrar isto: ajudou a fundar a Cornucópia em 1973, a companhia que, das traduções aos cenários, da dicção aos programas, inventou o teatro português tal como ainda o conhecemos ou sonhamos; e em 1996 criou, com um grupo de jovens actores, os Artistas Unidos, abrindo o palco ao vento da escrita contemporânea. Para além disso, fez tudo o resto: o cinema, seu primeiro amor, a crítica, o ensino, o associativismo; e a quem foi encontrando apresentou livros e filmes e discos e outras pessoas, construindo no mundo uma teia complexa como um cérebro. Talvez, por entre lágrimas, se possa começar a pensar no que aprendemos.

2.
O gesto de Jorge Silva Melo era o rascunho: o desenho e não a pintura, sugerir em vez de mostrar. Mais do que dos espectáculos (que via parcialmente dos bastidores, fumando incessantemente), gostava dos ensaios, da tentativa; os seus e-mails eram rápidos poemas em minúsculas; adoptou como género o post de Facebook, quando os jornais deixaram de querer as suas crónicas. Muito do que escreveu ficou reunido nos dois volumes dos Livros Cotovia, mas sempre preferiu o fragmento ao todo – o que não deixa de ser paradoxal numa das figuras mais completas da cultura portuguesa contemporânea. Outras contradições:

  • Escreveu sem parar, mas pouco sobre a experiência fulcral da Cornucópia; é mais conhecido pelos textos memorialísticos, mas as suas peças não têm o reconhecimento que merecem (Prometeu - Rascunhos é uma obra-prima).
  • Embirrava com os programadores e com a festivalização das artes, mas foi um programador fundamental no CCB, convidando as grandes companhias europeias e abrindo portas à experimentação nacional.
  • Quis destronar o encenador, procurando para si o segundo lugar e deixando vazio o primeiro; mas entre o general e a casamenteira dona de bordel nem sempre conseguiu ser a segunda; gostava que fôssemos nós a ir buscar o fogo aos deuses, mas partilhou connosco o seu fogo.

3.
Sim, a sua memória era a do século. Passear com ele por Lisboa ou Londres era ver a cidade por camadas, o que foi e o que é, pessoas, museus, cafés, teatros, livrarias. À nossa frente, as ruínas da Europa. Mas era menos nostálgico e saudosista do que alguns dos seus textos podem fazer crer. Não veio para perder, apesar das derrotas (uma das maiores, em 2002, o encerramento imperdoável pela CML do Espaço A Capital, lugar único de cruzamentos e descobertas). Gostava do combate e do dissenso, conspirava, zangava-se, ria. Como Rastignac enfrentando Paris, na vida queria ganhar, queria fazer. “Activismo? Sim. É isso o que falta. E é com certeza disso que eu gostarei sempre de ser acusado”, escreveu na revista Abril em Maio.

4.
Como se diz no fim do Lear, “we that are young (ou já não tão novos), shall never see so much, nor live so long (tão pouco, afinal)”. Mas temos muito para contar, enquanto nos lembrarmos.

Sugerir correcção
Comentar