A guerra no “celeiro do mundo” já ameaça África e o Médio Oriente

Fome no Iémen, instabilidade política no Médio Oriente – crescem os receios das ondas de choque da guerra em países como o Egipto, a Tunísia ou o Líbano, com uma enorme dependência do trigo vindo da Rússia e da Ucrânia.

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Para uma família iemenita, o pão representa mais de metade das calorias diárias YAHYA ARHAB

Desde o início da invasão russa da Ucrânia que os especialistas tinham lançado o alerta: um conflito na região conhecida como o “celeiro do mundo” teria inevitavelmente consequências dramáticas para a produção de cereais que se fariam sentir rapidamente em muitos países dependentes do trigo ucraniano e russo. Ao fim de duas semanas de guerra, os navios já não estão a sair dos portos ucranianos e dificilmente será possível fazer as sementeiras de Primavera num país parcialmente destruído.

Se esses impactos começam a atingir a Europa, a zona mais exposta é, sem dúvida, África. Em países já afectados pela fome, a actual crise pode ter consequências dramáticas a muito curto prazo, e o cenário de protestos populares provocados pela falta de pão começa a surgir novamente, como um fantasma, no horizonte – alguns analistas lembram que foram os aumentos dos preços dos alimentos que estiveram na origem das Primaveras Árabes, na Tunísia e no Egipto, há cerca de uma década.

A Rússia é responsável por 10% da produção mundial de trigo, o que faz dela o maior produtor do planeta, enquanto a Ucrânia ocupa o quinto lugar, produzindo 4% do total mundial – o que, em conjunto, corresponde praticamente ao total da produção de trigo da União Europeia. Em 2019, segundo dados do Observatório da Complexidade Económica citados pela Al Jazeera, os dois países juntos exportaram um quarto do trigo comprado no mundo, seguidos pelos Estados Unidos (16%), Canadá (14%) e França (10%).

O Norte de África e o Médio Oriente importam da Rússia e da Ucrânia mais de 50% dos cereais que consomem. Os números traçam um quadro muito claro. O Egipto, por exemplo, explica The Economist, é o maior comprador de cereais do mundo e “precisa de 21 milhões de toneladas por ano para alimentar 102 milhões de pessoas, mas produz menos de metade disso”. É da Rússia e da Ucrânia que vem 86% do trigo consumido pelos egípcios. Em segundo lugar surge a Turquia, com uma dependência de 74%.

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Padaria em Beirute, 8 de Março de 2022. Nos últimos dois anos, os libaneses viram já o preço do seu pão aumentar mais de 400%. REUTERS/Mohamed Azakir

Outro país numa situação preocupante é o Líbano, que viu os seus principais depósitos de cereais destruídos na explosão no porto de Beirute em 2020 e que neste momento tem capacidade para guardar apenas trigo suficiente para um mês de consumo. Nos últimos dois anos, os libaneses viram já o preço do seu pão aumentar mais de 400%.

A situação repete-se na Tunísia, que importa da Ucrânia cerca de metade do trigo que consome. Tal como no Egipto, o pão é subsidiado, mas em ambos os países há o receio de que isso não impeça uma subida dos preços muito em breve. Mesmo antes da guerra, o Presidente egípcio, Abdel-Fattah El-Sisi tinha dado indicações de que isso teria que acontecer. “Não posso dar 20 pães ao mesmo preço de um cigarro”, disse.

Com enorme preocupação está igualmente a ser olhado o Iémen, a braços com a sua própria guerra desde 2014 e que, recorda o The Guardian, importa todo o trigo que consome, um terço do qual vem da Rússia e da Ucrânia. Para uma família iemenita, o pão representa mais de metade das calorias diárias. “No Iémen, oito milhões de crianças estão já em risco de fome”, alertou Rama Hansraj, responsável pela organização Save The Children naquele país. “As famílias estão exaustas. Têm enfrentado horror após horror ao longo dos sete anos de guerra. Receamos que não aguentem outro choque, sobretudo se afectar o principal alimento que lhes mantém os filhos vivos.”

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Outro país que está a ser olhado com enorme preocupação é o Iémen, a braços com a sua própria guerra desde 2014 KHALED ABDULLAH/Reuters

Dos 14 países com enorme dependência do trigo ucraniano (a lista inclui também, entre outros, o Sudão, a Líbia e o Bangladesh), metade sofre já de situações de insegurança alimentar, afirma, por seu lado, Caitlin Welsh, directora para a segurança alimentar global do think-tank norte-americano Center for Strategic and International Studies, citada pelo Financial Times.

Mas não é só o trigo que está ameaçado. Ucrânia e Rússia são também grandes exportadores de milho (juntos representam um quinto das exportações mundiais), muito utilizado tanto para a alimentação humana como para a animal. Se, continua a Economist, no Egipto isso significa o aumento dos preços da carne, na África subsaariana representa um problema ainda mais grave por o próprio milho ser uma das grandes bases alimentares da grande maioria da população.

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Vladimir Putin, em 2009, num campo de trigo, na região de Krasnodar. O Norte de África e o Médio Oriente importam da Rússia e da Ucrânia mais de 50% dos cereais que consomem RIA NOVOSTI/Reuters

A China olha igualmente com preocupação para esse cenário, dado que é à Ucrânia que compra aproximadamente um terço do milho que usa para alimentar a sua produção de porcos de enorme escala, milho esse que terá agora que procurar junto de outros produtores, como o Canadá.

Menos falado, mas igualmente dramático, é o facto de a Ucrânia ser também o maior exportador mundial de óleo de girassol, cuja diminuição faz aumentar o preço de outros óleos alimentares, como o de palma, essenciais nas cozinhas de muitos países africanos. Para além, é claro, de a subida nos preços da energia levar a um aumento dos custos de produção e de a Rússia ser também um grande exportador de fertilizantes usados na agricultura, cujos preços vão igualmente subir.

A guerra começou numa altura em que os preços já estavam numa tendência ascendente devido a outros factores. O encerramento dos portos ucranianos (a maior parte das exportações sai do país por mar e os custos dos seguros aumentaram também exponencialmente) levou os importadores um pouco por todo o mundo a procurar fornecedores alternativos.

Mas, explica o Financial Times, o mercado mundial de cereais já estava sob pressão, sobretudo depois de grandes produtores como o Canadá terem tido um ano mau de culturas, as secas terem afectado a América do Sul e a Indonésia e a procura estar a aumentar na China e na Índia. Desde o início do ano, com uma subida de 35%, os preços do trigo tinham-se já aproximado dos valores mais altos da última década, enquanto o milho subiu 21% (o Brasil, o segundo maior exportador mundial, está a sofrer quebras nas colheitas devido a secas).

Perante este cenário, é difícil encontrar leituras optimistas da situação. Mas, apesar de tudo, elas existem. É o caso da de David Frum que, na The Atlantic, reconhecendo que estamos perante uma crise grave, considera, contudo, que ela não é tão grave como “choques alimentares” anteriores. Porquê?

As fontes ouvidas por Frum no Egipto garantem que as reservas de trigo são suficientes para seis meses, talvez nove. As situações mais graves são, afirma, as de países como o Iémen, a Etiópia ou o Mali, mas “onde a fome ameaça, a comunidade internacional pode salvar vidas”, embora isso implique um muito maior esforço financeiro (mais 25% no orçamento do Programa Alimentar Mundial da ONU destinado ao Iémen, por exemplo).

Por fim, diz Frum, a crise pode ser aproveitada para que os agricultores da África subsaariana aumentem a sua produção, conseguindo melhores preços no mercado. “Lidar com a subida de preços dos alimentos que este conflito trará não será fácil. Mas é possível”, conclui.

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