A guerra é sem porquê
Muito nitidamente, para Freud, o idealismo em política é uma coisa nociva.
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É bem conhecida a resposta que Einstein deu, em 1948, quando lhe perguntaram como seria uma eventual Terceira Guerra: “Não sei como se fará a Terceira Guerra mundial, mas posso dizer-vos o que será usado na quarta: pedras”. Esta inquietante profecia de um cientista — e pacifista — que atravessou as duas guerras mundiais traz à memória, por contraste, a disponibilidade e até o entusiasmo com que muitos escritores e intelectuais alemães e germanófonos desejaram a guerra, nas vésperas de 1914.
À exaltação nacionalista, juntava-se o sentimento da guerra como descarga e purificação com um elevado teor de acção civilizadora. Afinal, a guerra foi terrível, traumática, e grande parte das figuras influentes que tinham militado a favor da acção bélica saem dessa experiência, em 1918, sem nenhuma vontade de voltar a entoar os cânticos de guerra. Thomas Mann é um exemplo notável desta inflexão que ficou inscrita, com letras grandes, na sua obra.
Quando, no início da década de 1930, uma brisa de guerra começou de novo a soprar, era tempo de questionar o seu sentido com espiritual desalento. A Sociedade das Nações, instituição fundada na sequência da Primeira Guerra com o fim de garantir a paz, encomendou a Freud e Einstein uma correspondência entre ambos sobre a guerra e as suas razões. A interrogação Porquê a Guerra? é o título sob o qual foram reunidas as duas cartas: a que Einstein enviou a Freud, de Potsdam, datada de 30 de Julho de 1932; e a resposta de Freud, remetida de Viena, em Setembro desse ano.
Entre o fundador da psicanálise e o físico da teoria da relatividade tinha havido um primeiro contacto, cinco anos antes, em Berlim, por altura do Natal. Um biógrafo de Freud, Peter Gay, cita uma carta em que este fala desse encontro nestes termos: “Ele sabe tanto de psicologia como eu de física, mas tivemos uma conversa muito agradável”.
Einstein admirava Freud por delicadeza, mas para ele a psicanálise era uma Weltanschauung (uma visão do mundo, digamos), o que para Freud era um insulto. E, dos dois, apenas Freud já se tinha debatido com o sentido e o não-sentido da guerra, ao reflectir sobre a condição neurótica da cultura. Na sua carta, Einstein está mais interessado em fazer perguntas ao seu interlocutor, atribuindo-lhe implicitamente a missão de “médico da civilização” (ou da cultura?), do que em dar respostas. E a primeira pergunta que ele espera que seja respondida pelo “psicólogo das profundezas” é esta: “Existirá um meio de libertar os homens da ameaça da guerra?”. Como, no fundo, não acredita nas explicações da psicanálise, trata de responder à sua pergunta com os meios em que acredita: os Estados devem criar uma autoridade legislativa e judiciária para a pacificação dos conflitos que possam surgir entre eles.
Em suma, ele enuncia os princípios de base da Sociedade das Nações. Mas este programa, segundo Einstein, encontra uma série de obstáculos: por um lado, há o “apetite político de poder” das minorias que governam; por outro, há uma “necessidade de ódio e de destruição das nações”. Daí, a questão terapêutica que ele coloca a Freud, nos termos de um darwinismo psicológico: “Existirá uma possibilidade de orientar o desenvolvimento psíquico do homem de maneira a torná-lo mais imune às psicoses de ódio e de destruição?”.
Muito mais longa que a de Einstein, a carta de Freud parece querer decepcionar um Einstein moralizante e psicólogo e começa por dar ao seu interlocutor uma lição de história e de ciência política, analisando as relações do direito com o poder e falando da evolução social da violência. Até parece ele que quer furtar-se a considerações psicológicas e, mais ainda, psicanalíticas.
Muito nitidamente, para Freud, o idealismo em política é uma coisa nociva. E quase avisa que não se deve contar com a psicanálise para dotar de pseudo-ciência uma fraseologia humanista. Escusado é pensar que, em resposta a Einstein, ele postule um “inconsciente da guerra”. A guerra, para ele, está fora dessas profundezas: é um paroxismo dos conflitos de interesse que estruturam a realidade, é a pulsão de morte a funcionar não na esfera do simbólico, mas na esfera do real. E a sua conclusão é esta: “Tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra”.