De Lisboa à fronteira ucraniana, três dias de distância, vontade de ajudar e combater (mesmo aos 68 anos)

Dezenas de voluntários saíram hoje de Lisboa rumo à Polónia e Roménia. Esperam trazer, nos próprios carros, uma centena de refugiados. Já em Cracóvia, Miguel entregou bens essenciais e leva o sogro, ucraniano, até à frente de combate. São exemplos entre muitos portugueses que se mobilizam para apoiar a resistência ucraniana.

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Miguel Stanley na chegada à Polónia. DR

Partiu na manhã desta quarta-feira, 2 de Março, uma caravana humanitária organizada por voluntários portugueses, a caminho da Polónia e Roménia. Nas regiões que fazem fronteira com a Ucrânia, há refugiados que os esperam para fugir da guerra, rumo a Portugal. Nos seus próprios carros, contam trazer, pelo menos, 100 pessoas, muitas crianças.

Ainda que o ponto de partida seja Lisboa, esta viagem começou dias antes, num grupo de WhatsApp onde se pensavam formas de apoiar os refugiados ucranianos. Pedro Fonseca lançou a ideia da caravana e, em poucas horas, multiplicou-se a vontade de ajudar: algumas pessoas já habituadas a missões de ajuda humanitária, outras sem qualquer experiência parecida, mas determinadas a cruzar a mesma meta.

“Estava com a minha mulher e vi o Pedro perguntar quem estava disponível para se juntar. Comecei logo a escrever ‘sim, quero ir’. Quando é para ajudar não podem existir medos ou receios”, conta Pedro Silva, ao telefone, a caminho da Roménia. Já sabe que família regressará consigo a Portugal, já viu os seus rostos em fotografias. “É muito difícil ter noção do que estas pessoas estão a passar. A bebé da família que virá comigo é muito parecida à minha filha de seis meses. O pai ficou para trás, na guerra. É surreal.”

São perto de quatro mil quilómetros, dezenas de horas de estrada, 50 voluntários, 23 carros cheios de medicamentos, produtos de higiene, roupas e alimentos doados. Por cá, um grupo de consultores imobiliários contacta proprietários para perceber se podem emprestar as suas casas durante algum tempo. As famílias que escolherem viver em Portugal, onde muitos têm familiares, já terão quartos onde dormir nas primeiras noites.

A caravana deverá chegar ao destino na madrugada de sexta-feira e voltará a Portugal, o mais tardar, na segunda-feira seguinte. Os responsáveis pela missão humanitária perderam a conta aos pedidos de ajuda vindos da Ucrânia, recebidos através de partilhas online e com o apoio das embaixadas de Portugal na Polónia e Roménia.

“Isto é tão chocante que não me sentia bem apenas a partilhar informação. Depois de ver a luta daquele povo senti que tinha de fazer mais, foi um impulso.” Sónia Morais Santos hesitou ao partilhar esta viagem com o marido e os quatro filhos, com receio de que achassem a ideia absurda. Poucos dias depois, já segue em direcção à Polónia, ao lado do marido. “Os nossos filhos perguntaram se estávamos malucos, se não ficaríamos em perigo, mas acharam a intenção espectacular. O mais pequenino é o mais preocupado desde que a guerra começou. Sobretudo depois de uma pandemia, são crianças que vivem com muita incerteza, muito medo.”

Antes da partida, todos os voluntários tiveram um momento de preparação para cenários de ajuda humanitária. Foi “aterrador” mas necessário, diz Sónia, de 48 anos. Foram aconselhados a conversar, partilhar inquietações. “Vamos encontrar pessoas em situações que esperamos nunca conhecer. Tentaremos ser o mais humanos possível, sem sermos paternalistas. Não somos salvadores, mas estamos aqui, ajudamos como podemos.”

"Os ucranianos não vão desistir, não vão baixar os braços"

Existem muitos mais grupos de portugueses a voluntariar-se para recolher bens essenciais ou ajudar na fronteira ucraniana. Miguel Stanley é mais um dos que deixaram Lisboa para conduzir até Cracóvia, numa carrinha cheia de medicamentos, material médico e alimentos. O sogro, ucraniano de 68 anos, vai com um propósito: ficar. Quer combater a ocupação russa em Lviv, ao lado de amigos que já o esperam.

“O meu sogro está desesperado para entrar na Ucrânia, não o conseguimos dissuadir. Vi a vontade que tinha de ajudar e meti-me no carro sem pensar duas vezes.” O médico dentista de 49 anos decidiu partir de forma espontânea e, após três dias em viagem, está no sul da Polónia. Em Cracóvia há, sobretudo, silêncio, descreve. Compara-o à calma que antecede uma tempestade.

Há rapazes polacos a querer sair do seu país para ajudar nas frentes de combate, conta. Muitos dos que ficam em casa já abriram as suas portas a mulheres e crianças ucranianas. Bandeiras pintadas de azul e amarelo dão cor às ruas, há carros visivelmente cheios de mantimentos a fazer fila nas estradas. É a solidariedade o que mais emociona Miguel.

“Existem momentos na vida de uma pessoa que maiores que nós mesmos. Percebo porque é que o meu sogro quer fazer isto. Os ucranianos não vão desistir, não vão baixar os braços.” Casado com uma mulher ucraniana, Miguel diz que os últimos dias têm sido, sobretudo, de adrenalina. Apela a que, em Portugal, cada um veja como pode ajudar na plataforma We help Ukraine, que falem com as suas comunidades, que digam em concreto como podem ajudar.

Deixados perto da fronteira ucraniana bens essenciais para mulheres e crianças – já terão chegado à Polónia perto de 300 mil pessoas desde o início da ofensiva russa na Ucrânia – e para ser entregues nas frentes de combate (como materiais de primeiros socorros e bolsas para transfusão de sangue), Miguel espera regressar a Portugal acompanhado por seis refugiados nos lugares vagos da carrinha.

Refugiados que, diz, sente como se fossem da sua própria família, porque podiam ser. A avó da mulher de Miguel, de 87 anos, perdeu hoje a casa. O prédio em que vivia, numa zona residencial a 20 quilómetros de Kiev, foi bombardeado. Demorou duas horas a descer nove andares e, entre os escombros, foi ajudada por uma equipa de resgate. Está segura, num hospital, mas não terá uma morada para onde regressar. “Vem aí uma avalanche de refugiados, a Europa vai mudar. Uma fronteira não é real, falamos línguas diferentes mas somos todos iguais.”

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