O boicote cultural à Rússia cresce de dia para dia, mas a História desta forma de luta não é 100% bem-sucedida
O cancelamento da exportações culturais russas está em marcha, mas não devia ser indiscriminado, defende o realizador ucraniano Sergei Loznitsa: “Não devemos julgar as pessoas pelos seus passaportes. Devemos julgá-las pelos seus actos.” Países como a África do Sul, no passado, e Israel, no presente, sofreram o mesmo tipo de isolamento – e os resultados não são inequívocos.
Valery Gergiev, maestro-estrela e apoiante incondicional de Putin, afastado da Filarmónica de Munique, do Festival de Edimburgo e do Scala de Milão. A soprano Anna Netrebko, astro cintilante nos maiores palcos mundiais da ópera, e também ela uma até agora muito vocal apoiante de Putin, a anunciar uma pausa na carreira, por tempo indeterminado, depois de ver cancelados alguns dos seus próximos concertos. Bandas como Franz Ferdinand ou Green Day e músicos como Nick Cave ou Iggy Pop a suspenderem digressões na Rússia. O Festival de Cannes a proibir a presença de delegações enviadas pelo país que agora invadiu a Ucrânia, a Disney, a Warner Bros e a Sony a congelarem a distribuição dos seus filmes em todo o território russo. O boicote ao sector cultural russo pode não ter carácter oficial, mas é a cada dia que passa uma realidade cada vez mais pesada, contribuindo para o total isolamento a que o país vem sendo votado na sequência da agressão à Ucrânia.
Oleksandr Tkachenko, ministro da Cultura ucraniano, exortara à imposição de sanções para “limitar a presença russa na arena cultural internacional”, apelando ao boicote de artistas russos ou à suspensão da actividade de todos os centros culturais russos nos países seus parceiros. Tais medidas surgem listadas numa petição lançada na segunda-feira de que é o primeiro signatário, e que termina com a declaração: “A Federação Russa é um Estado pária. A cultura russa, quando usada como propaganda, é tóxica! Não seja um cúmplice.”
As medidas estendem-se a todas as áreas: da decisão da Academia Europeia de Cinema de excluir os filmes russos dos Prémios do Cinema Europeu, à pressão sobre a Tate Modern, em Londres, para cortar relações com Viktor Vekselberg, oligarca próximo de Putin, tornado membro honorário da Tate Foundation pelas doações feitas no passado à instituição. A Bienal de Veneza, que abre a 23 de Abril, não terá representação russa, depois de os artistas Kirill Savchenkov, opositor do regime de Putin, e Alexandra Sujareva, bem com o curador Raimundas Malasaukas, terem renunciado à participação.
Mesmo no interior da Federação Russa, cujos dirigentes haviam deixado o aviso de que manifestações de oposição ao conflito serão consideradas traição ao povo, Elena Kavalskaya, directora do Teatro Meyerhold, em Moscovo, renunciou ao cargo poucas horas após o início da invasão. “Não se pode trabalhar para um assassino e receber dele um salário”, escreveu na sua conta de Facebook. Está longe de isolada. Entretanto, 17 altas figuras da cultura russa assinaram um manifesto em que pedem o fim do conflito. Entre elas está, por exemplo, Vladimir Urin, director do Teatro Bolshoi que foi, em 2014, um dos signatários de uma carta aberta de apoio a Putin após a anexação da Crimeia.
Há, no entanto, quem alerte para as injustiças que podem advir de um boicote indiscriminado. É o caso do ucraniano Sergei Loznitsa, realizador de Funeral de Estado. O cineasta anunciou que deixava de ser membro da Academia Europeia de Cinema após esta ter emitido um primeiro comunicado sobre a intervenção russa que considerou tíbio na condenação do regime de Putin. Porém, depois do anúncio da exclusão dos realizadores russos na corrida aos prémios anuais daquela entidade, recordou que, após o início da guerra, as primeiras mensagens que recebeu vieram de pessoas como o cineasta Viktor Kossakovski, pedindo desculpas e manifestando a sua vergonha pela barbárie que o regime desatara a fazer em seu nome. “O que está a acontecer perante os nossos olhos é horrível, mas peço-vos que não caiam na loucura. Não devemos julgar as pessoas pelos seus passaportes. Devemos julgá-las pelos seus actos”, afirmou Loznitsa, citado pela Variety.
Ao cancelar os seus concertos na Rússia, marcados para este Verão, Nick Cave publicou um texto onde também se dirige aos opositores russos de Vladmir Putin: “Ucrânia, estamos contigo e com todos aqueles que na Rússia se opõem a este acto brutal.” No interior do país agora ostracizado, já Oxxxymiron, um dos mais famosos rappers russos, cancelara todos os concertos marcados para os próximos meses, exortando a população a iniciar um movimento anti-guerra.
Da África do Sul a Israel
Não é no entanto a primeira vez que o boicote cultural é usado como arma de combate. Aconteceu na I Guerra Mundial, quando as várias nações, por fervor nacionalista, retiraram dos seus teatros e das suas salas de concertos peças e obras de países inimigos, bem como as canções, vindas do outro lado da barricada, que até então faziam parte do entretenimento popular. O boicote cultural a um país e aos seus artistas tem, porém, como modelo próximo o do movimento anti-apartheid, que contribuiu para dar visibilidade e apoio internacional à luta contra o regime racista da África do Sul.
Como parte da estratégia de isolamento do país e manifestação de solidariedade global para com a sua luta, o Congresso Nacional Africano (ANC) lançou pela primeira vez o pedido de um boicote generalizado à África do Sul em 1959. Seria preciso esperar nove anos até que as Nações Unidas aprovassem uma resolução em que os países membros eram instados a cortar qualquer ligação cultural, académica ou desportiva com a África do Sul. Em 1980, nova resolução reforçava a anterior, referindo-se especificamente a um boicote cultural.
Mas a história desse boicote ficaria também marcada por rupturas célebres, como as protagonizadas por Elton John, Ray Charles ou pelos Queen, que deram concertos no país, ou por Paul Simon – este último, que gravara o histórico álbum Graceland com músicos sul-africanos, expôs o carácter complexo de um boicote deste tipo: quebrou-o conscientemente, explicou então, para mostrar ao mundo o trabalho de músicos negros sul-africanos, vítimas do apartheid.
Apesar das vicissitudes do movimento, ficaria para a História o papel de estrelas como Miriam Makeba, Stevie Wonder, Peter Gabriel, Bob Dylan, Lou Reed ou Annie Lennox na consciencialização global para a iniquidade do regime. Papel que, aliás, vem sendo também reclamado pelos activistas palestinianos que, em 2005, criaram o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções).
Inspirado pelo movimento sul-africano, o BDS defende a aplicação de sanções económicas e o boicote cultural ao Estado israelita, que acusa de submeter a população palestiniana a um regime de apartheid. Ainda que longe de generalizado (Nick Cave ou os Radiohead, por exemplo, recusam-se a alinhar no boicote), o apoio de figuras como Brian Eno, Roger Waters, Lauryn Hill ou Chuck D tem sido decisivo, apontam os responsáveis, para manter a visibilidade da sua luta e colocar sob pressão o Estado de Israel. Ainda assim, será forçoso recordar que longas três décadas passaram entre primeiro pedido de boicote por parte do ANC e o fim do apartheid, e pouco mudou na política israelita desde a criação do movimento BDS.
No caso presente, tão distinto dos supracitados, o boicote que várias instituições vão fazendo à cultura russa, seus artistas, agentes e financiadores, contribui certamente para o isolamento do regime de Putin. Mas não é unívoco. O Festival de Cannes baniu delegações oficiais russas, mas não os seus cineastas, recordando “os artistas e profissionais que nunca deixaram de lutar contra o actual regime e que nunca se associariam a estes actos intoleráveis e àqueles que estão a bombardear a Ucrânia”. Anton Svyatsky, da Fragment Gallery, com filiais em Nova Iorque e Moscovo, e que, nos Estados Unidos, expõe artistas queer impedidos de mostrar o seu trabalho na Rússia devido à legislação anti-gay, receia aliás os efeitos de um boicote generalizado”, “uma medida cega que não distingue se um artista foi reprimido na Rússia ou não”. “Fazer da Rússia um gulag cultural”, diz, “não é, de forma alguma, a solução”.