“Se pararmos as emissões amanhã, os glaciares não deixam de derreter. Temos de saber como lidar com isso”

As alterações climáticas já estão a acontecer e muitos dos efeitos estão relacionados com a água: há mais secas, mais cheias, mais incêndios, mais escassez de água. A este ritmo, o cenário vai agravar-se e “a adaptação é uma realidade – mas não adianta se não reduzirmos as emissões de CO2”.

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A adaptação às alterações climáticas tem limites, reconhece a cientista do IPCC EPA/Alberto Valdes

A geógrafa sueca Martina Angela Caretta é uma das autoras que coordenam um dos capítulos (dedicado à água) do mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que se foca sobretudo na forma como nos podemos adaptar a estas mudanças. “Não se pode pensar em alterações climáticas sem se pensar na água”, garante a investigadora, em conversa com o PÚBLICO. A professora na Universidade de Lund, na Suécia, diz que os efeitos das alterações climáticas são já visíveis e que é preciso olhar para as medidas de adaptação que tiveram sucesso – tendo sempre em mente que a temperatura continua a subir e que cada caso é um caso.

A geógrafa especializada em recursos hídricos conta ao PÚBLICO que o último encontro presencial deste grupo do IPCC aconteceu em Faro, em 2020 – e, desde aí, trabalharam e encontraram-se sempre em meios digitais. A académica ressalva que este é o único capítulo do relatório liderado por duas mulheres e refere que os cientistas não são pagos para participar nestes relatórios do IPCC. São nomeados pelos próprios países: apesar de ter dupla cidadania (sueca e italiana), foi nomeada pela Suécia.

A pandemia atrasou o lançamento deste relatório, em que se diz que o prazo para agir e travar as alterações climáticas é cada vez mais apertado: “A janela de oportunidade que temos para não ultrapassar os 1,5 graus nos próximos 20 anos está a fechar-se”, alerta a cientista.

Qual considera ser a maior ameaça que as alterações climáticas representam em relação à água?
Não se pode pensar em alterações climáticas sem se pensar na água. O que mostramos neste relatório é que mais de metade da população mundial já sentiu ou sentirá o efeito das alterações climáticas através da água. Haverá mais inundações, secas, derretimento dos glaciares, subida do nível do mar, além de incêndios florestais – tudo isto ligado à água. Ou água a mais ou água a menos. Dizemos que as alterações climáticas intensificaram o ciclo da água, o que quer dizer que assistimos a mais eventos extremos e também vemos a intensidade e a frequência destes eventos a aumentar. E continuará a aumentar no futuro. A magnitude deste crescimento será determinada por quanto a temperatura global subirá.

E como podemos travar as alterações climáticas? Podemos pensar a nível local ou é mesmo peremptório que reduzamos as emissões de gases poluentes?
Sim a ambas. A prioridade número um para os cidadãos e governos é que as emissões de dióxido de carbono precisam de ser drasticamente reduzidas e isso tem de acontecer rapidamente. Sabemos que a janela de oportunidade que temos para não ultrapassar os 1,5 graus nos próximos 20 anos está a fechar-se. Num contexto em que já estamos de 1,1 graus em relação aos níveis pré-industriais, isso criou uma série de desafios como estes de que falamos: cheias, secas...

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Martina Angela Caretta DR

O que mostramos neste relatório, que é novo, é que as alterações climáticas já estão a acontecer. E com isto já a acontecer, temos de nos adaptar. O que este relatório faz que os outros não fizeram é olhar para a adaptação. Como é que lidámos com as mudanças? Como lidámos com o aumento do nível do mar, com cheias, com o derretimento dos glaciares? Que medidas foram eficazes e quais não foram? E será que podemos garantir que aquelas que foram eficazes o serão no futuro, em que estaremos numa posição de aquecimento de 1,5 graus?

O que podemos fazer?
As alterações climáticas não vão parar, porque já pusemos em andamento uma série de mudanças antropogénicas no clima. Se pararmos com as emissões amanhã, os glaciares não deixam de derreter. Estas coisas vão continuar a acontecer e temos de saber como lidar com elas. A adaptação não é só uma questão tecnológica como um melhor sistema de irrigação, melhor gestão da água. Não podemos pensar que a tecnologia vai ser a “bala de prata” [solução mágica]. O que também fazemos neste relatório é olhar para a ciência em torno da decisão certa, de uma ser melhor do que outra. Aquilo que vemos é que as melhores decisões são aquelas que envolvem toda a gente numa localidade específica. Sublinhamos a importância de integrar grupos marginalizados nesta discussão, como as populações indígenas, mulheres, pessoas mais pobres. Vai além do local.

Até porque os grupos mais vulneráveis acabam por ser os mais afectados...
Exactamente. E é por isso que falamos de justiça climática. Aqueles que tiveram um papel menor nas alterações climáticas e que têm menos emissões – por causa da sua situação económica, da situação do seu país ou das suas condições enquanto grupo – são aqueles que têm sentido os maiores impactos e riscos das alterações climáticas. Temos um abismo entre pessoas de diferentes classes e também entre o Sul Global e Norte Global. E também em relação ao género.

Falou nessa adaptação às alterações climáticas em curso: como acha que essa adaptação e reacção têm sido feitas?
A conclusão é que, quando se trata de água, adaptámo-nos através de todos os sectores económicos. Temos mais provas de medidas de adaptação na agricultura e em zonas rurais. A maioria de nós vive em cidades e a maioria de nós irá viver nas cidades no futuro. E aí há menos provas de adaptação. Não no sentido de a adaptação não ter acontecido – porque aconteceu –, mas a literatura que está disponível não é tão grande como a que temos para zonas rurais. Aí é um desafio, há uma lacuna.

Qual a principal conclusão deste relatório do IPCC?
É difícil escolher uma só. Este relatório fala concretamente de medidas de adaptação de uma forma que os relatórios anteriores não tinham feito. Mostra que a adaptação tem limites que estão relacionados com atingirmos os 1,5 graus. Estes limites são importantes e servem para nos motivar a seguir o Acordo de Paris. A adaptação é uma realidade, vimos o que resulta e o que não resulta, mas não adianta se não reduzirmos as emissões de CO2.