A Polónia abre os braços para receber os irmãos ucranianos
O mesmo país que está a construir uma vedação para impedir a entrada de refugiados a partir da Bielorrússia está a facilitar a entrada de milhares de ucranianos que fogem à invasão russa.
A caminho da passagem fronteiriça de Medyka, entre a Polónia e a Ucrânia, basta olhar pela janela do carro para ver os avisos na auto-estrada para uma linha de apoio aos refugiados ucranianos. Passam carros com bandeiras ucranianas; num camião está escrito “Putin huilo”, algo como “Putin é um idiota” (provavelmente um adjectivo mais duro) – um slogan cada vez mais comum na Ucrânia e noutras paragens. Por aqui, os efeitos da guerra no país vizinho criaram uma corrente de solidariedade com pouco paralelo noutros cenários, com o objectivo muito claro de impedir que aqui se produza mais uma crise de refugiados nas fronteiras da União Europeia.
A longa recta que culmina com o posto fronteiriço reflecte a realidade para a qual a Europa acordou subitamente desde que a Rússia lançou uma invasão em toda a escala da Ucrânia. De um lado está uma fila de dezenas de camiões de toda a Europa Central paralisados à espera de poderem saber se podem avançar, perante a incerteza sobre quem estará a controlar o território para onde se dirigem; do outro, estão estacionados carros e carrinhas de milhares de voluntários que nos últimos dias se mobilizaram para apoiar quem ali chega.
É só mais à frente que vão aparecendo os grupos daqueles que fogem à guerra: são, na sua larga maioria, mulheres com crianças, carregando-as como podem, seja pela mão, nos braços, em carrinhos de bebé manchados de pó e que apenas se limitam a arrastar-se pelo chão. As Nações Unidas estimam que mais de 200 mil pessoas fugiram da Ucrânia desde o início da invasão, e o Governo polaco dizia ter recebido 115 mil, independentemente de terem visto ou passaporte válido.
Ninguém traz mais que uma mala, por vezes sacos inseguros, com aquilo que conseguiram juntar em poucos minutos antes de fugir. Para trás deixaram os homens da sua vida – pais, tios, maridos, filhos, sobrinhos, amigos – que ficaram a combater o invasor. Consigo trazem noites sem dormir, dias quase sem comer, caminhadas desumanas, ferimentos, mas a certeza de que os ucranianos irão continuar a resistir.
“Os homens não têm medo, é incrível”, diz Anastasia, fazendo acompanhar a frase com o único sorriso em vários minutos de conversa para contar como aqui chegou. Veio de Kiev, de onde tinha saído 24 horas antes, com a filha, a irmã e a sobrinha. Enquanto as primeiras explosões se faziam sentir na capital ucraniana, os amigos diziam-lhe para permanecer calma e ter confiança nas Forças Armadas ucranianas. “Eu tenho, mas também tenho uma filha pequena...”, explica.
O pai da filha é um dos homens que ficaram a defender o país nas fileiras das Forças de Defesa Territorial, um braço do Exército composto apenas por civis voluntários que têm recebido formação militar nas últimas semanas. Os seus pais também decidiram ficar, apesar da insistência de Anastasia. “Esperam que as nossas forças ganhem. Tenho a certeza de que vamos ganhar!”, afirma.
“Foi assustador”
Tetiana veio de mais perto, da região de Ivano-Frankivsk, no Sudoeste da Ucrânia, mas nem por isso fez um percurso mais fácil até à Polónia. Conduziu duas noites de carro até a uma pequena cidade, mas depois já não conseguiu passar. Os 12 quilómetros que a separavam de um país em paz foram feitos a pé, com a irmã e o sobrinho. “Foi assustador”, recorda. Seguiram durante horas numa estrada sem iluminação – para não chamar a atenção dos militares russos – em que o perigo de serem atropelados estava sempre presente.
Como muitos ucranianos, esta contabilista foi atirada sem aviso para uma condição que ainda hoje tem dificuldade em interiorizar. “Nas primeiras noites [desde o início da invasão], não podíamos acreditar que isto estava a acontecer. Mesmo hoje, quando vejo aviões ou ouço algum barulho mais alto, fico sempre assustada”, conta. Tetiana vai ser recebida pela mãe que vive na Polónia há 20 anos, em Suwalki, no Nordeste do país.
É o que acontece com a esmagadora maioria dos refugiados ucranianos que chegam à Polónia. Estima-se que trabalhem entre um e dois milhões de ucranianos no país vizinho, atraídos pelos salários mais elevados e pelos laços culturais que aproximam os dois países, sobretudo os residentes nas regiões mais ocidentais da Ucrânia. Por isso, grande parte dos refugiados que tem chegado à fronteira polaca tem familiares ou amigos dispostos a alojá-los.
Mas há quem se mostre disponível para ajudar, mesmo quem não conhece. Ivan segura um cartaz onde está escrito Wroclaw em cirílico. Tem família em Kharkiv, uma das cidades ucranianas mais assediadas pelas forças russas, mas não é por eles que aguarda. Na verdade, não está à espera de ninguém em concreto, apenas de quem necessite de casa e queira viajar com ele e com os amigos que o acompanham até Wroclaw. Poucas horas depois, Ivan surge, sorridente, com a informação de que 20 ucranianos recém-chegados irão consigo.
O momento da espera por entes queridos é passado das maneiras mais diversas. Oliisia aguarda pela filha e pela neta, de poucos meses, que devem atravessar a fronteira nas horas seguintes. Mas enquanto esse momento não surge, vai ajudando os restantes. Trouxe consigo dezenas de sacos com comida, montou uma mesa e vai passando o dia a distribuir chá quente a refugiados e voluntários.
Mais tensa é a espera de Mohamed, que acaba de chegar de Estrasburgo com a namorada, depois de 15 horas a conduzir sem parar. O irmão mais novo estava a estudar em Kharkiv quando a invasão mudou a vida de todos e agora está a caminho da Polónia. Traz a namorada, que é ucraniana, e a família, e dali seguem todos para França.
“Não saio daqui sem o meu irmão”, garante, rejeitando qualquer hipótese de ir descansar depois da longa jornada. Teme que tenha dificuldade em sair de Lviv, onde lhe chegaram a pedir 300 dólares para o conduzir até à fronteira. “É uma guerra, as pessoas deviam ajudar-se”, lamenta. “Se ele tiver algum problema ou se não conseguir sair, então vou eu até lá, não quero saber.”
Discriminação
Não são apenas ucranianos que chegam a Medyka. Haitham é um iraquiano que vive há oito anos na Ucrânia, onde estudou e trabalha como dentista, e está com a mulher, Sima, ucraniana. Para aqui chegar, o seu calvário mede-se em 40 quilómetros a pé que terminou com uma longa espera para passar a fronteira. Os pais de Sima ficaram em Donetsk, cidade ocupada desde 2014 por separatistas pró-russos. “Eles estão habituados à guerra, são como iraquianos”, graceja Haitham.
Contam a história de um homem em Lviv que se estava a despedir da mulher e dos três filhos – os homens entre os 18 e os 60 anos estão proibidos de abandonar o país e foram mobilizados para combater. A tristeza da cena levou-os a oferecerem uma ajuda criativa: pegaram em dois dos filhos e acompanharam a mulher para entrarem no autocarro que os ia transportar, e o homem fez-se passar por pai viúvo com um bebé. “Foi arriscado, mas ele conseguiu”, diz Haitham.
Entre os estrangeiros que também fogem da Ucrânia são recorrentes as acusações contra as autoridades ucranianas de tratamento discriminatório. Suleiman, um marroquino que estuda há três anos em Kharkiv, diz que os guardas fronteiriços ucranianos e polacos “tratam muito mal os negros e as mulheres de hijab”. Diz que os mandam ir para o fim das filas e relata alguns episódios de agressão.
O tratamento diferenciado entre ucranianos e estrangeiros, sobretudo não-ocidentais, evoca a forma como as autoridades polacas, no final do ano passado, impediram milhares de refugiados provenientes sobretudo do Iraque e do Afeganistão de tentarem atravessar a fronteira através da Bielorrússia.
Um relato semelhante é feito por Aditya, um estudante indiano de Medicina. “Os soldados ucranianos não nos deixavam passar, diziam que, a nós, a Polónia não nos deixava entrar”, conta. “A eles não lhes interessa como estamos, se temos fome, se estamos magoados”, lamenta.
Ao seu lado está a sua colega Shatabdi, que veio do Omã para estudar em Ternopil. Do seu grupo, foram os únicos que conseguiram autorização para atravessar a fronteira e Aditya não tem dúvidas de que isso apenas se deveu ao estado de saúde da colega: está numa cadeira de rodas por ter os músculos dos pés inchados por causa do frio. “Esperamos que os outros estejam bem”, diz a estudante.