“Preço do leite e da carne tem obrigatoriamente de subir”

Quase metade do milho usado na alimentação animal vem da Ucrânia. Produtores temem quebras de fornecimento e recusa de fretes para o Mar Negro.

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Nuno Ferreira Santos (arquivo)

A guerra na Ucrânia vai inevitavelmente repercutir-se na carteira dos consumidores portugueses, dada a importância que aquele país tem no fornecimento de cereais e óleos usados na alimentação de animais de pecuária.

Mais dia, menos dia, dizem produtores ao PÚBLICO, os preços do leite, da carne e mesmo dos ovos terão de subir, visto que “os preços praticados hoje não cobrem os custos de produção”, sendo o conflito entre Rússia e Ucrânia uma espécie de “gota de água” que esgotou a capacidade de encaixar mais subidas nos custos de produção.

Idalino Leão, que assumiu recentemente a presidência da Fenalac (Federação Nacional das Uniões das Cooperativas de Leite e Lacticínios), diz que “o conflito Rússia-Ucrânia veio acrescentar ainda mais tensão e instabilidade ao mercado, proporcionando terreno fértil para a especulação bolsista”. Embora as compras sejam feitas com três ou seis meses de antecedência, no mercado de commodities como estes cereais “já está tudo a disparar”. “Preço do leite e da carne tem obrigatoriamente de subir”, conclui.

Alguns destes bens que Portugal consome vêem da Ucrânia, que fornece, por exemplo, 40% do milho de que o país precisa, segundo números de Jaime Piçarra, secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais (Iaca).

Com a Ucrânia fechada e a Rússia à beira de isolamento económico, os preços que já vinham acelerando desde 2020 acentuaram a tendência de subida. Na última semana, como exemplo, milho, trigo e cevada encareceram 15 euros por tonelada, na soja o aumento foi de 20 euros por tonelada, e de 150 euros por tonelada no óleo de soja. Colza e girassol tiveram aumentos de dez e 15 euros por tonelada, respectivamente.

Face a estes números, garante o presidente da Fenalac, “é urgente e fundamental que o poder político da União Europeia e de cada Estado Membro tome medidas para salvar a produção nacional”. “Há agricultores portugueses a abandonar a actividade, a abater animais muito jovens, porque não aguentam sequer alimentá-los”, garante. A solução pode passar em Portugal por uma “ajuda para aquisição de alimentos para animais” - porque a seca não deixou nada nos campos -, uma “ajuda para a energia verde e gasóleo agrícola” e “uma isenção temporária dos pagamentos à Segurança Social”.

“Com este aumento enorme dos custos de produção, com os efeitos da seca a somar agora à conjuntura geopolítica da Rússia/Ucrânia, diria que estão reunidas as condições para uma tempestade perfeita que pode levar à falência de milhares de produtores”, alerta Idalino Leão, que não adianta estimativas sobre qual será o aumento necessário, mas sublinha que “o leite chega a ser mais barato do que a água” e que “tem de haver mais equilíbrio entre os três elos da cadeia, produção, indústria e distribuição”.

O problema toca profundamente a agro-pecuária portuguesa. A alimentação animal representa cerca de 60% dos custos e as facturas com a energia e com os fitofármacos completam a lista dos principais factores de custo. Ora, a Europa, incluindo Portugal, importa cereais, energia e químicos dos países agora em conflito.

“A Rússia é um importante fornecedor mundial de energia e é ainda o maior exportador mundial de trigo. A Ucrânia é, por sua vez, o maior produtor mundial de girassol, o sexto em milho e cevada, o sétimo em colza e nono em trigo e soja”, anota Leão. “No caso português, a Ucrânia é um importante fornecedor de milho, girassol e colza para a indústria da alimentação animal”, destaca.

Mesmo antes da guerra, o contexto já não era fácil. Pandemia, crescente aumento das importações da China, aumento dos custos de transporte e duas campanhas fracas na América do Sul, por consequência do fenómeno la niña, “levaram à redução dos stocks a nível global”. Com a seca actual a impedir outras alternativas alimentares, a guerra na Ucrânia coloca o sector numa situação dramática que conduzirá inevitavelmente a um aumento dos preços no cabaz alimentar.

“Há duas situações que estão a preocupar actualmente os operadores: a eventual recusa de fretes para o Mar Negro por parte dos armadores (os seguros não cobrem situações de guerra) e o eventual rompimento de contratos de matérias-primas alegando ‘motivos de força maior'”, destaca o presidente da Fenalac.

Para as empresas produtoras de rações para animais, a nova incógnita nesta equação é o fornecimento de milho pela Ucrânia. Este cereal é a matéria-prima principal para fazer rações e 40% vem da Ucrânia, refere Jaime Piçarra, estimando que “dentro de duas ou três semanas” pode haver aumento de preço nas rações. Logo, o aumento em bens como leite, carne e ovos “é inevitável”.

“A questão, neste momento, já nem é o preço, que está a disparar de tal maneira que, na realidade, as empresas já nem estão a dar cotações”, sublinha o secretário-geral da IACA. “Mais do que o preço, o problema é encontrar estas matérias-primas, é uma questão de disponibilidade noutras origens”.

Não podendo contar com a Ucrânia, as empresas portuguesas terão de se virar para outros países do leste da Europa, para os EUA, Canadá e América Latina, mas o ideal é que a UE tome uma iniciativa comum, defende este responsável. “Toda a Europa fica na mesma situação. A Ucrânia é o celeiro da Europa. Já tínhamos a seca, a crise do leite e da suinicultura e agora levamos com este impacto.”

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