Putin lançou uma invasão sem limites para submeter a Ucrânia à sua vontade
No primeiro dia de combates, as forças militares russas chegaram às portas de Kiev e mostraram que o seu objectivo é monumental. Os ucranianos prometem resistir.
Poucas imagens evocarão de forma mais rigorosa o que representa a invasão russa da Ucrânia como aquelas que mostram multidões de pessoas envolvidas em cobertores nas estações de metropolitano de cidades como Kiev e Kharkiv. Os paralelismos com o Blitz de Londres durante a II Guerra Mundial são evidentes. Em choque, a Europa e o mundo voltaram a assistir à guerra em larga escala lançada por uma potência nuclear contra um país vizinho.
Às primeiras horas desta quinta-feira, o poderio militar russo foi projectado nas três frentes onde, durante meses, se acumularam mais de 150 mil soldados, equipamento, artilharia e material logístico. Através do Donbass, a Leste, em apoio às forças separatistas, pelo Norte, por via da Bielorrússia, e pelo Sul, a partir da Crimeia, a península anexada por Moscovo em 2014. A ofensiva foi lançada por terra, mar e pelo ar.
É cedo para conseguir aferir o impacto humano da invasão russa. O balanço divulgado pelo Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, ao fim do dia apontava para pelo menos 137 mortos entre soldados e civis e 316 feridos, mas é provável que o número real seja mais elevado. A Rússia não admitiu publicamente qualquer baixa. Um hospital na região de Donetsk, na zona controlada pela Ucrânia, foi atingido num bombardeamento e seis pessoas morreram. Só no primeiro dia de hostilidades, cerca de cem mil pessoas fugiram de suas casas, segundo uma estimativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Os principais focos de batalha concentraram-se em torno da capital, no Leste e no Sul do país, demonstrando a grande escala da ofensiva russa, justificada por Vladimir Putin como uma missão para defender a população russófona no Donbass, mas que depressa se revelou num ataque a todo o território.
Em Kiev, ouviram-se explosões no centro urbano e não foi preciso muito tempo para as tropas russas ficarem muito perto de alcançar a sede do poder político ucraniano. Uma das batalhas mais intensas foi travada pelo controlo do aeroporto militar de Gostomel, a 20 quilómetros de Kiev. Uma operação de pára-quedistas russos chegou a conseguir tomar o local, mas o Exército ucraniano ofereceu resistência adivinhando-se um combate noite dentro.
As forças de segurança da capital distribuíram ao longo do dia perto de dez mil espingardas a civis para defesa pessoal. Ao fim do dia, Zelensky anunciava a mobilização geral da população para a defesa do país e foi proibida a saída do país de todos os homens entre os 18 e os 60 anos.
As auto-estradas às portas de Kiev encheram-se durante horas de filas quilométricas de carros que tentavam dirigir-se a Oeste para fugir aos combates. As estações de metro serviram para que milhares pudessem passar a noite a salvo de bombardeamentos. Durante o dia, as forças russas lograram o controlo sobre as instalações da central nuclear de Chernobil, a Norte de Kiev.
Os combates em torno da cidade de Kharkiv, a segunda maior do país e um dos alvos fundamentais para as tropas russas, também foram intensos. Ao fim do dia, o Exército ucraniano parecia estar a conseguir manter o controlo sobre a cidade, mas o Governo admitia uma situação “muito dura”. O Exército ucraniano disse ter causado 50 baixas entre soldados russos e destruído quatro tanques e seis caças na região de Lugansk. Moscovo negou a destruição dos veículos e diz que dois aviões militares ucranianos foram abatidos.
Os principais progressos das forças russas parecem ter sido na frente Sul, onde a partir da Crimeia foi lançado um assalto bem-sucedido que redundou na tomada da cidade de Kherson. Essa vitória tem um valor estratégico importante por permitir o controlo russo do Canal da Crimeia, a partir de onde poderá ser possível lançar assaltos contra Odessa e Mariupol.
“As forças ucranianas estão a conseguir atrasar com sucesso as ofensivas russas em todos os eixos, com excepção de uma penetração na Península da Crimeia. O falhanço russo em conseguir abater a força aérea ucraniana ou enfraquecer a cadeia de comando provavelmente está a permitir estes sucessos iniciais da Ucrânia”, resumia um relatório do Institute for the Study of War.
"Decapitar” o Governo
Poucos minutos antes de os primeiros bombardeamentos atingirem o território ucraniano, Putin justificava a intervenção na Ucrânia, apresentada como uma “missão militar especial”, com objectivos amplos. “Procuramos desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, bem como levar a tribunal aqueles que levaram a cabo inúmeros crimes sangrentos contra civis, incluindo contra cidadãos da Federação Russa”, afirmou.
Depois de meses em que Moscovo rejeitou qualquer intenção de lançar qualquer tipo de iniciativa militar sobre a Ucrânia, acusando o Ocidente de “histeria” sempre que eram revelados planos de invasão, as palavras de Putin sugerem um objectivo muito mais amplo do que alguns analistas previam, como simplesmente uma consolidação do território ocupado pelos separatistas.
Um responsável do Departamento de Defesa dos EUA expunha, sob anonimato, aquela que parece ser a interpretação em Washington: “a decapitação deste Governo”. O secretário de Estado, Antony Blinken, foi menos taxativo, mas sublinhou que “todas as provas sugerem que a Rússia pretende rodear e ameaçar Kiev”.
Ao fim do dia, depois de o Ministério da Defesa russo ter garantido que “os objectivos do primeiro dia” tinham sido cumpridos, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, apresentou uma espécie de termos de rendição a Kiev: a declaração de neutralidade e a retirada de armamento estrangeiro do país.
Há oito anos que os ucranianos estavam acostumados a viver com uma guerra no seu território, e durante meses esse perigo pairou sobre as suas cabeças. Mas ninguém estava preparado para o que foi iniciado esta quinta-feira. Em Mariupol, Viktor dizia ao PÚBLICO durante a tarde que não havia pânico naquela que é provavelmente uma das cidades mais visadas pela Rússia e prometia manter-se ali “enquanto se sentir seguro”. Ao início da noite, fez uma actualização: “As autoridades locais estão a pedir-nos para abandonar a cidade.”
O PÚBLICO falou com um cidadão ucraniano, no dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia.
João Ruela Ribeiro,Carolina Pescada