“Não precisamos de ter heróis mortos” – o testemunho de um português que decidiu ficar na Ucrânia
O português Alexandre Pinto, de 57 anos, vive e trabalha há 17 na Ucrânia. Ficou espantado por haver tanques em Kiev e vê os ucranianos como uma formiga a lutar contra o elefante. Já sente que tem “espírito ucraniano” e vai continuar no país, com a mulher ucraniana e a filha de 13 anos. “Mesmo que eu pensasse sair daqui, não tinha como”, diz.
Hoje não dormi muito, porque realmente estava à espera que alguma coisa acontecesse. Entrámos nesta situação de recolher obrigatório e é um silêncio surdo durante a noite. Quando ouvia passar um carro destacado que estava a quebrar a lei, já toda a gente pensava que era o barulho de um avião que ia a passar ou qualquer coisa que se parecesse. É um bocadinho stressante.
Eu não estou em Kiev agora, estou em Poltava. Foi para cá que vim ao início, depois desenvolvi um negócio e abri também escritórios em Kiev, tenho casa lá e outra aqui. Ando sempre para trás e para a frente. Vim-me embora de Kiev antes de começar esta confusão toda e agora não penso ir para lá. Nem há maneira de entrar.
Em Poltava não aconteceu nada durante a noite. Anteontem acordei com os aviões a passarem por cima das nossas cabeças, quando rebentou a situação. Hoje já não, felizmente não houve nada. Estava a pensar que hoje será um dia complicado. Agora entendi que o Putin aceitou negociar com a Ucrânia, não sei se é ganhar tempo ou se será algo de positivo.
Mas não parece: os tanques estão a três quilómetros do centro da cidade, não sei o que é que há aqui para negociar. Estava a ler que também o Putin estava a dar um conselho aos soldados ucranianos para que tomassem o poder pelas mãos deles, que iria evitar uma data de problemas, de maneira que estas negociações parecem fantochada.
Vou esperar para ver o que é que acontece
A minha família está um bocado nervosa. Hoje vou ter de lhes fazer a vontade e vamos para a casa do campo, a 20 quilómetros daqui, onde estão os pais da minha mulher, para que a família passe a noite toda junta. É uma zona muito fora da cidade, há bunkers, há poços de água, batatas e cebolas. Pode acontecer guerra que podemos lá estar meses, auto-suficientes. Vou fazer a vontade à família e passar lá a noite e ver o que é que se passa esta noite. Toda a gente está à espera que Kiev seja tomada hoje à noite definitivamente. Não vejo outra opção.
Nos supermercados está tudo vazio. A minha esposa hoje foi ao supermercado e mandou-me duas fotografias: passaram lá e limparam tudo. Por que carga de água é que alguém compra cinco ou seis quilos de sal? Compram coisas ao desbarato.
Nos multibancos estão a dar só 3000 hrivnia por cartão, o equivalente a menos de 100 euros. É muito pouco. As bombas de gasolina só estão a autorizar abastecer 20 litros por carro – com isso alguns carros fazem 200 quilómetros, no meu caso só fazia 100. Há filas enormes, de quilómetros. É muito difícil.
Para onde eu vou hoje são 20 quilómetros, não faz diferença, não é uma viagem grande. De resto, não há maneira de fazer deslocações e mesmo que eu pensasse sair daqui não tinha como. Para chegar aos pontos de encontro que a embaixada assinalou no último email que recebemos, há um dia, são 700 quilómetros de onde eu estou. Não posso chegar com carro nenhum a essa distância.
Fico sem gasolina a meio caminho e o que é que me acontece? Fico com a família no meio da estrada com dois graus lá fora? Além disso, as filas para passar para a fronteira para o lado de lá têm dez quilómetros. Por enquanto, vou esperar para ver o que é que acontece. Já cá estou há 17 anos e já sou um bocadinho vacinado, já tenho um espírito mais ucraniano, já não começo a correr aos primeiros gritos.
“Porque é que há gente tão má no mundo?”
Os meus dias são muito diferentes do que eram antes do início da guerra. Primeiro: não tenho trabalho, porque o meu trabalho é tudo com estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos. Se não tiver clientes a vir para a Ucrânia, não tenho nada para fazer. O meu tempo é a ler as notícias, a acalmar os outros e a dar entrevistas.
Uma coisa que me preocupa bastante é a minha filha de 13 anos, porque é muito sensível, é muito menina. Olha para a televisão, vê umas quantas barbaridades e começa a chorar e a perguntar porque é que há gente tão má no mundo. É muito difícil explicar os meandros de tudo isto. Deixa de ter a escola, deixa de ter tudo, fica confinada a casa e agora com o recolher obrigatório ainda pior.
Há tanques em Kiev e a Ucrânia foi abandonada por toda a gente
Para já não pondero ir para Portugal. A não ser que as coisas aqui tenham um volte-face muito, muito negativo. Sinceramente o que me assusta mais neste momento não é propriamente os tiros – é a defesa que a Ucrânia tem que é muito fraca.
Fico abismado como é que aparecem tanques no centro da cidade de Kiev. De onde é que eles vieram? Não vieram a voar, não foram lançados por aviões. Onde é que estão as defesas? Estas dezenas de helicópteros a sobrevoar e a atacar a 30 quilómetros da cidade... Onde é que está o sistema aéreo defensivo? Como é que isto aconteceu? A permeabilidade é grande.
Nem pensava ver tanques nas ruas. Estamos no século XXI. É uma coisa que realmente não faz sentido. A Ucrânia foi abandonada por toda a gente e está sozinha.
Não me surpreende, ao fim e ao cabo. Foi muita parra e pouca uva, muitas conversas. Para o Putin nem afecta nada. Ele vai com as intenções dele e ninguém se vai opor. Toda a gente tem um discurso muito bonito, mas de efectivo tem pouco. Agora que precisamos de ajuda… casas roubadas, trancas à porta. Essas sanções não vão fazer efeito nenhum. Teriam efeito, se fizessem o controlo do SWIFT, mas eles não querem.
É a formiga a lutar contra o elefante
Coitados dos ucranianos que não vão a lado nenhum: andam aqui a lutar sozinhos e é uma pena. Estou preocupado, porque os ucranianos são muito voluntariosos, há muitas armas espalhadas por todo o lado. O Governo começou a dizer que dava armas a quem quisesse e soubesse manejá-las. É a formiga a lutar contra o elefante.
Não precisamos de ter heróis mortos. Estas 13 pessoas que morreram hoje naquela ilha, uma zona estratégica defensiva em Odessa. Foi-lhes pedido que se rendessem, eles mandaram-os à fava e morreram todos. Agora o Presidente diz que os vai condecorar como heróis nacionais. As famílias, os filhos e as mulheres destes homens vão pelo mesmo pensamento?
Tenho alguns amigos na zona norte do país, jovens muito dedicados à causa e que querem ir lutar. Também não têm alternativa: com as leis que o Governo pôs, homens dos 18 aos 60 anos não podem abandonar o país. Há elementos da tropa nas fronteiras a inspeccionar os carros e a separar os pais dos miúdos, o marido da mulher, o namorado da namorada, porque não podem sair do país. Dizem-lhes: “Não sejas cobarde, vai lutar.”
O desfecho de tudo isto vai ser um Ianukovitch versão 10. Querem que a Ucrânia continue independente, mas dentro das condições que eles querem. Vamos ter um governo fantoche, vamos ter um governo russo aqui, um governo de transição. Depois vão pôr quem eles querem e lá vamos começar a tentar levantar a cabeça, mas dentro das regras da Rússia, porque não temos ajuda de ninguém.
Sem maneira de ganhar
Tem sido uma maré de azar. Em 2020 foi a covid, depois vem 2021 e tive um acidente grave de carro. Ontem devia estar a aterrar em Miami, para uma conferência. Bilhetes comprados e, 24 horas antes de voar, rebentou a guerra. Não posso sair daqui.
Nem pondero sair. É muito complicado as pessoas ponderarem sair, ainda mais no meu caso, que temos família e negócio estabelecido aqui. Não é pegar no carro e ir embora. É pegar na mulher, na filha, nos sogros, nos cunhados e enfiar-me na estrada durante horas e dias para conseguir passar para o outro lado. E depois vou para Portugal e o que é que me espera aí?
Espero que as pessoas não tenham heroísmos ocos de tentarem ser heróis, porque não têm maneira de ganhar. Quantos menos mísseis andarem aqui pelo ar, melhor. Uma outra preocupação que eu também tenho é que este país tem quatro centrais nucleares, 15 reactores a trabalhar. Um míssil qualquer que acerte num destes reactores e temos um novo Tchernobil à décima potência – e aí morre toda a gente. É brincar com o fogo.
Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de uma entrevista