Seca em Portugal
A romaria às pedras-mártires de Aceredo
A aldeia galega cujas ossadas reaparecem a cada seca prolongada, atrai uma inevitável romaria. Tal como nas aldeias onde já quase não vive ninguém, é no fim-de-semana que a gente regressa.
A paisagem constante não é notícia. Dá um postal, um vislumbre de prazer, se for bonita, mas notícia é quando o seu sossego é posto em causa. Uma seca é menos disruptiva que um incêndio, um terramoto, um vendaval, e normalmente não gera romarias. A menos que, num assomo de intensidade, nos revele segredos submersos pela água e pelo esquecimento.
A aldeia de Vilarinho da Furna, na albufeira da barragem homónima, em Terras de Bouro, ou Aceredo, povoado galego, não muito longe dali, desaparecido sob o espelho d' água formado pela Barragem do Alto do Lindoso, são fantasmagorias de lugares perdidos, pedras-mártires silenciadas pelo desenvolvimento, que, ao (re)emergirem, pela sequía, saciam a nossa sede pelo lado mórbido da existência.
São casas e ruas, um cadáver urbano e social do qual só restam ossos, atraindo gente: uns mergulhando, religiosamente, num passado que directa ou indirectamente lhes pertence, outros buscando apenas o cenário para uma fotografia que se afundará, passados os primeiros likes nas redes sociais, no mesmo esquecimento a que Aceredo, quando chover, será votada. No rosto de uns percebe-se que a ruína está ainda prenhe de memórias, e não fossem os outros, para quem elas não passam de palco para gritarem pela atenção do mundo, talvez por breves momentos pudessem escutar, no silêncio das pedras, o rumor da gente que um dia fez delas chão. Abel Coentrão