Quero acreditar que todas nós, mulheres, gostaríamos de nos sentir livres e não ameaçadas; livres e não com aquela coragem de quem tem, a toda a hora, de enfrentar o medo; livres e não expostas ao julgamento que tem por base a tríade bafienta de se ser bela, recatada e do lar.
Há ainda muitas lutas com as quais nos vamos debater, bem sei. E as últimas semanas ressoaram como uma sirene que não nos quer deixar adormecer neste caminho tão esforçado e que tem custado a vida a tantas de nós.
E como andamos adormecidas. O Grande Irmão tem o gosto perverso de nos alhear, enquanto nos injecta uma carga de sonolência tal que impede algumas de nós de perceber que, em plena televisão portuguesa de canal aberto, assistimos àquilo a que a Comissão para a Igualdade de Género considerou “comportamentos ameaçadores” em relações interpessoais. Ensaiadas ou não, pelas audiências, tudo.
Ficámos a saber que no show da vida — aquilo que agora é inteligente chamar-se experiência social —, o entretenimento está acima de quaisquer valores e que só o amor resolve as coisas mais condenáveis. Não é dever da televisão educar e se a alegada vítima em nada se opõe, está tudo bem — the show must go on.
E continuou. Terminámos a semana passada a saber que um militar da GNR, acusado de ter violado uma mulher detida, foi absolvido pelo Tribunal. Intrigante não é a decisão, mas as justificações das juízas que a sustentam. Não foi violação, foi fraqueza humana, espoletada por provocações sucessivas da alegada vítima.
É assustadora a forma como normalizamos a violência contra as mulheres, especialmente quando somos nós mesmas a fazê-lo. Em casa, no convívio social, nas instituições e nos media, ainda lidamos com a história da colher, do marido e da mulher, em olhares, frases, expressões que cheiram a mofo.
Se tem ciúmes, é porque te ama. Se quer ver as mensagens que tens no telemóvel, é porque te ama, tens alguma coisa a esconder? Estavas à espera de quê? Não saísses à noite sozinha, não andasses assim vestida, sabias bem para o que ias, ficasses em casa.
Assim devia ter ficado a mulher de Felgueiras, gravemente agredida com uma moca com pregos, pelo marido e pelo amante, condenados a penas suspensas pelo Tribunal, que se apoiou em citações da Bíblia sobre o adultério da mulher, para ter alguma paz de espírito na condenação que aplicou aos agressores.
Assim devia ter ficado a Beatriz, morta brutalmente por um colega da faculdade que a amava de forma doentia e cujos ciúmes o levaram a cometer tal crime, como descreveram alguns meios de comunicação, na altura.
É isto que o patriarcado e a misoginia nos ensinam. Somos fracas, mas fortes na arte da provocação — qual Eva a dar a provar a maçã a Adão. Somos vítimas, porque temos culpa, na forma de vestir, de andar, de falar, de fazermos escolhas.
Por isso, é normal que um revisor da CP se ache no direito de abordar uma passageira e comentar o seu decote, é normal que nos assobiem e nos digam frases asquerosas, é normal que nos critiquem a manicure, depilação e maquilhagem em falta, é até normal que nos declaremos antifeministas, porque, vai na volta, estamos a falhar enquanto vítimas e não percebemos que tudo o que de mau nos acontece é consequência de não querermos ser belas, recatadas e do lar.
Pois não, nós só queremos ser livres.