Portugueses na Ucrânia. “Estão todos apavorados e a Europa está a dormir”
Hugo Canas, engenheiro civil, vivia na Ucrânia há 17 anos. Abandonou o país de carro no domingo e alerta para o risco de uma guerra num país com 15 reactores nucleares e sem capacidade de defesa. “A Rússia está a bombardear complexos militares mas também centros industriais civis. Vai criar a maior crise económica. Isto vai ser bem mais dramático do que parece.” Alexandre Pinto está decidido: pretende ficar com a família em Poltava.
Hugo Canas é engenheiro civil e estava na Ucrânia há 17 anos. Tinha fundado uma empresa com um sócio norte-americano e uma sócia ucraniana. Abandonou o país no domingo, de carro, com a mulher, cidadã ucraniana, e encontra-se actualmente na Polónia. Em conversa telefónica com o PÚBLICO esta manhã, conta como a Ucrânia fechou as fronteiras e está a impedir a saída de homens entre os 18 e os 60 anos, uma vez que conta com eles para uma mobilização militar. Os estabelecimentos comerciais deixaram de aceitar transacções com cartões de crédito e só aceitam dinheiro vivo. Os bancos estão abertos, mas há limites aos montantes de levantamento.
“O mais preocupante são os combustíveis. As bombas de gasolina estão vazias”, afirma, explicando que de Kiev à fronteira são cerca de 600km, mas apenas um terço desse caminho é feito em auto-estrada. Mesmo assim, diz, essas estradas encontram-se todas congestionadas e as pessoas arriscam-se a ficar na estrada sem gasolina e ao frio.
Desde 2013/14, quando houve a revolta contra o então Presidente Viktor Ianukovitch, muito próximo de Vladimir Putin, que a população ucraniana começou a fazer treino militar. Hugo, a mulher e os sobrinhos costumavam treinar tiro com metralhadora aos fins-de-semana, actividades organizadas por associações civis e paramilitares. “O meu sobrinho de 11 anos sabe disparar uma Kalashnikov, mas o que vale uma Kalashnikov contra tanques e mísseis”, questiona.
Segundo Hugo Canas, que é natural de Lisboa, o Governo ucraniano vai enviar para a linha da frente 250 mil soldados e 600 mil reservistas mas não tem munições, coletes antibalas, drones, bazucas ou mísseis do tipo Javelin. “Falta tudo e agora as fronteiras estão fechadas”, resume.
“Hoje [quinta-feira] as pessoas acordaram apavoradas e a Europa ainda está a dormir”, critica. O engenheiro civil lembra que a Ucrânia tem duas grandes bacias de gás de xisto por explorar e que sairia mais barato do que o gás da Polónia. “A Ucrânia poderia fornecer gás à Alemanha por 35 anos. Depender da Rússia é uma estupidez.”
Rússia “quer pôr a Ucrânia no terceiro mundo"
“Nunca, na história da humanidade, houve uma guerra com este potencial de poder de fogo num país com centrais nucleares. A Ucrânia tem 15 reactores nucleares comerciais (em seis centrais nuclares) e um de carácter científico mesmo no centro de Kiev. Estamos a falar também de muita indústria química pesada e não só armazenamento como em Beirute. Isto pode ser cinco a sete vezes pior do que Beirute”, acrescenta. Adiantando que muitas centrais nucleares “não são modernas, não têm sistemas de segurança e algumas já deviam ter sido desactivadas”. Mas agora o Governo ucraniano não as pode mandar parar, diz, pois isso poria em causa o fornecimento de electricidade e Internet à população.
Segundo Hugo Canas, “a Europa não está consciente” de todo o perigo, que pode provocar milhões de refugiados ucranianos e de países vizinhos. “Onde vai haver alojamento para essas pessoas todas?”, questiona.
“A Rússia está a bombardear complexos militares, mas também centros industriais civis. Vai criar a maior crise económica. Isto vai ser bem mais dramático do que parece. A Rússia quer pôr a Ucrânia no terceiro mundo. Não vai haver empregos e indústria depois disto. O país pode ser arrasado”, descreve, alertando que, a seu ver, pode ser “a maior catástrofe depois da Segunda Guerra Mundial”.
A maior central nuclear da Ucrânia situa-se em Japorijjia e é responsável pelo fornecimento de 20% da energia para aquecimento e electricidade do país.
Sobre as sanções contra a Rússia anunciadas pela União Europeia o emigrante português diz que “não vão funcionar” e vão ser “uma gota de água em comparação com o que a Rússia vai receber da China pelo contrato assinado na véspera da abertura dos Jogos Olímpicos”. “Foi o contrato da vida de Putin.”
Vivem, actualmente, na Ucrânia 160 luso-ucranianos e 42 cidadãos com nacionalidade portuguesa, segundo dados revelados pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, quarta-feira à noite na RTP3. Noventa estão em Kiev e os restantes espalhados pelo país.
Alexandre Pinto, de 57 anos, vive em Poltava, uma cidade com cerca de 350 mil habitantes a sul de Kiev e a 130 km da fronteira com a Rússia. É casado com uma cidadã ucraniana e tem uma filha de 13 anos com dupla nacionalidade. “Já fiz aqui a minha vida, não tenho intenção de sair. Não me sinto seguro, mas não vou deixar ninguém para trás. Se não é para levar todos, não vou”, explica ao PÚBLICO por telefone, referindo-se à família alargada da mulher.
Tal como outras pessoas na Ucrânia acordou com as notícias dos bombardeamentos e explosões e ficou um pouco surpreendido. “Andámos aqui quase a brincar ao Pedro e ao lobo e as pessoas recusavam-se a acreditar que isto ia chegar a uma situação drástica”, admite, explicando que na manhã desta quinta-feira a sua mulher esteve duas horas para levantar no multibanco o máximo de dinheiro permitido por cartão: três mil hrivnias (cerca de 90 euros) e que as pessoas estão a abastecer-se ao máximo com os bens alimentares mais básicos.
Alexandre Pinto, que tem uma empresa de match-making, relata que os bombardeamentos “têm sido estratégicos”, que “isso não é defender os russos” e que há muita contra-informação. “Dizem que em sítios onde houve explosões estavam bombas lá postas, pois não houve registo de mísseis a sobrevoar e há infiltrados a espalhar o pânico”, acrescenta.
Em Lviv, conta, as sirenes começaram a tocar nesta manhã de quinta-feira e as pessoas “começaram a ser aconselhadas a comprar água e velas”. Lviv é uma cidade junto à fronteira para onde vários serviços diplomáticos estrangeiros se transferiram, saindo de Kiev.