Realidade aumentada

É difícil, para quem não ouve vozes, colocar-se no lugar de quem as ouve. Na tentativa de atenuar esta dificuldade, fomos, ao longo do processo de criação da peça, aproximando-nos dessa realidade, ouvindo e questionando quem vive com ela, e imaginando circunstâncias nas nossas experiências de vida que nos permitissem alcançar o que poderá ser essa vivência.

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Sabes que não nos consegues ignorar. Sabes disso. Nós somos mais fortes que tu. Vozes Sem Conta é um espectáculo de teatro inspirado e informado por quem ouve vozes que outras pessoas não ouvem.

É difícil, para quem não ouve vozes, colocar-se no lugar de quem as ouve. Na tentativa de atenuar esta dificuldade, fomos, ao longo do processo de criação da peça, aproximando-nos dessa realidade, ouvindo e questionando quem vive com ela, e imaginando circunstâncias nas nossas experiências de vida que nos permitissem alcançar o que poderá ser essa vivência.

Vês como é que se faz? Tens de atacar as inseguranças dela. Se há traumas, ou complexos de culpa, é aí que tens de pôr pressão.

O pilar fundamental em que assentámos o processo criativo foi um conjunto de entrevistas a pessoas que se voluntariaram para relatar-nos as suas experiências. A riqueza e intensidade desses testemunhos permitiram uma boa aproximação a este universo, e a equipa criativa foi assim impressionada, auditivamente, pelas histórias relatadas.

Deixei a voz da mãe a repetir texto directamente das memórias dela e comecei a preparar vozes da infância. Excertos de escola, fragmentos de televisão, cães a ladrar, o refrão de canções.

É surpreendente a diversidade de experiências no universo de pessoas que ouvem vozes. Vozes interiores, exteriores, de pendor negativo ou positivo, injuriosas, elogiosas, sábias, palavrosas, entrecortadas, sussurradas, distantes, des/conhecidas, alheias, directas, na segunda ou na terceira pessoa, de pessoas vivas, mortas, vozes religiosas, vozes mundanas, vozes que se vêem, vozes de crianças, de adultos, vozes que se transformam. Os limites que conhecemos para aquilo que designamos de realidade são desafiados pelas muitas dimensões deste tipo de percepção.

Custa, não é? A Paula era a favorita da mamã. Ela comia o queijo fresco e tu mudavas-lhe as fraldas.

O teatro vem retratando ao longo dos séculos a experiência humana nas suas mais diversas facetas. Enquanto arte colectiva, resulta da reunião de uma diversidade de visões artísticas, que propositadamente exacerbámos na construção deste espectáculo. Por isso, as situações cénicas que o compõem resultam de uma multiplicidade de vozes (equipa de quatro dramaturgas/os), e reflectem diferentes perspectivas e sensibilidades face a esta realidade. Os discursos íntimos destas vozes e aqueles que as ouvem surgem aqui em papéis principais, numa ficção inspirada em realidades que frequentemente nos ultrapassam.

Porque é que não haveríamos de ter tanto direito sobre o teu corpo como tu? Afinal de contas, não existimos todos aqui?

O processo de leituras e reescritas dos diálogos que suportam textualmente a peça foi mais longo do que o habitual nos nossos processos criativos. Não tenho dúvidas de que isso reflecte as imensas incertezas que sempre nos acompanharam, fruto da delicadeza e intangibilidade que sentimos associadas ao tema.

Não! Desligar! Não recalcular, desligar! Não quero ir para aí! Pára! Desliga!

Um dos objectivos centrais da peça, partilhado com o Projecto Ouvir Vozes no seu todo, era o de contribuir para a visibilidade pública e abrir as portas à reflexão e a uma discussão mais alargada sobre este tema.

A peça Vozes sem Conta é a manifestação artística de várias vozes que ouviram as vozes de ouvidores de vozes. Quisemos proporcionar ao público uma experiência intensa, e quisemos ser sinceros no nosso falar, na expressão do impacto que estas realidades nos provocaram.

Costumo pensar nisso, que há coisas que as vozes me dizem que vêm do meu subconsciente. De memórias, de coisas que vi, que ouvi, mesmo sem ter consciência disso. Mas alguns casos são difíceis de compreender.

Esta dimensão da contribuição da arte para a compreensão do mundo foi assumida, desde o início, como elemento fundamental deste projecto, que se multiplicou em várias vertentes de comunicação - artigos no P3, podcasts, mesas redondas, uma instalação sonora e uma peça de teatro -, numa perspectiva holística de compreensão do mundo, pelo racional e pelo emotivo.

Apocalipse significa Revelação, sabia? Vem do Grego. Porque o livro foi revelado a um João, para que o escrevesse. E foram vozes. Foram vozes que lhe ditaram o livro. Como a mim.

Neste momento, com o projecto na sua fase final e atingido o objectivo primordial de trazer o tema de Ouvir Vozes para a ribalta, a sensação que fica é a de que deveríamos estar permanentemente a falar disto, até se tornar algo familiar e que compreendamos plenamente.

Eu quero acreditar, eu quero muito acreditar. Se eu ouvisse, se eu pudesse ouvir, seria tão mais fácil, tão mais fácil!

Ao longo deste texto fui intercalando com o meu discurso vozes das personagens da peça. Foi o modo que imaginei para tentar passar-vos, textualmente, uma experiência que talvez ainda não tenham tido antes. É uma das técnicas habituais, na criação teatral, para activar a criação de significados: a simultaneidade de elementos cénicos e as eventuais associações que poderão provocar em quem assiste.

E agora talvez sintam a tentação de voltar atrás e reler, repensando associações surgidas da relação entre as diferentes vozes contidas no texto, talvez procurando um sentido global.

Meu Deus... tu existes?

Ou talvez não sintam necessidade de fazer sentido do todo, um sentido racional.
Talvez baste aceitar, receber, sentir.
Às vezes isso é tudo.

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