Comunidade Israelita do Porto tem lucros milionários com nacionalidade portuguesa

Advogado Francisco de Almeida Garrett é a figura proeminente da comunidade judaica portuense. É sobrinho de Maria de Belém, a proponente da lei que permitiu a atribuição da nacionalidade portuguesa a judeus sefarditas. Responsáveis da CIP têm lucros privados com o negócio da cidadania.

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Museu Judaico do Porto na Sinagoga Kadoorie Mekor Haim, a maior sinagoga da Peninsula Ibérica Rita França

Os gabinetes do primeiro-ministro, António Costa, e da ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, receberam uma carta de alerta a 20 de Janeiro de 2016. A Comunidade Israelita do Porto (CIP) advertia para a possibilidade da ancestral Comunidade Judaica de Belmonte, descrita como “uma comunidade de judeus muito pobres (sempre foram feirantes e pequenos lojistas) que nunca teve recursos económicos sequer para contratar um rabino”, recorrer à fraude se autorizada pelo Governo a certificar descendentes de judeus sefarditas para efeitos de obtenção da nacionalidade portuguesa.

O aviso deu resultados, deixando apenas a CIP e a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) com essa sensível missão. A partir dessa data, e com destaque para a CIP, a certificação gerou um negócio que ascende a várias dezenas de milhões de euros. Desde 2015, data da entrada em vigor das alterações à Lei da Nacionalidade, até ao final do ano passado, a CIP e a CIL certificaram 86.500 pedidos de nacionalidade, tendo mais de 32 mil sido já concedidos pelo Ministério da Justiça e estando ainda por analisar algumas dezenas de milhares. Do total de pedidos, perto de 90% foram instruídos pela comunidade judaica do Porto (76,5 mil), incluindo o do multimilionário Roman Abramovich, amigo pessoal do Presidente russo, Vladimir Putin, que se tornou cidadão português em Abril de 2021, como foi revelado pelo PÚBLICO a 18 de Dezembro.

Com o presidente a viver em Israel, a comunidade judaica portuense tem o advogado Francisco de Almeida Garrett como figura proeminente. É sobrinho da ex-deputada do PS, Maria de Belém Roseira, proponente das alterações à Lei da Nacionalidade, aprovadas por unanimidade no Parlamento, em 2013, que permitiram um reparo histórico e sem termo aos sefarditas expulsos de Portugal a partir do final do século XV. O que surgia como um gesto de boa vontade e uma justa reparação histórica acabou por transformar-se num negócio com enormes lucros para a CIP e para elementos da sua direcção.

Há apenas uma década, a então modesta comunidade portuense era igualmente qualificada como uma entidade judaica sem recursos. “Não tinha sequer dinheiro suficiente para contratar um rabino ou mesmo consertar o telhado da sua sinagoga”, descreveu o jornal israelita The Jerusalem Post, em Novembro de 2019. “Hoje, esta congregação ortodoxa de 400 pessoas [seriam apenas 20 em 2012] no norte de Portugal tem [dinheiro] suficiente para ambos, além de um hotel kosher, um banho ritual, um cantor [solista da Sinagoga], seguranças e um novo museu”, concluía a publicação.

A transformação radical ter-se-á iniciado em 2011, com a chegada à CIP de Francisco de Almeida Garrett, e, especialmente, com os avultados lucros gerados pela certificação dos descendentes dos judeus sefarditas. Por cada certificado, a CIP cobra um emolumento de 250 euros (para além dos 250 euros da taxa da conservatória), o que resulta em muitos milhões de euros para os cofres deste organismo. Os números exactos são desconhecidos. A par desta preciosa fonte de rendimento, alguns elementos da direcção desenvolvem também negócios privados paralelos igualmente lucrativos relacionados com a nacionalidade dos descendentes dos sefarditas.

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Maria de Belém Roseira, ex-deputada do PS, foi uma das proponentes da nova lei dos sefarditas Luís Ramos

Negócios da CIP

No total, são sete os elementos que compõem a direcção da CIP: Yigal Ben Zion, presidente; Isabel Ferreira Lopes, vice-presidente (com funções executivas) e uma outra vice-presidente de que se desconhece o nome; como vogais tem Francisco de Almeida Garrett e Gabriel Senderowicz (membro da B'nai B'rith Portugal, uma das mais antigas organizações mundiais judaicas); Eliran Eliahu Graedje é secretário e Michael Rothwell é tesoureiro e porta-voz. A comunidade conta ainda com dois rabis – Daniel Litvak e Joel Zekri.

Francisco de Almeida Garrett tem sido o grande impulsionador da “nova” CIP, segundo várias fontes contactadas pelo PÚBLICO para esta investigação. Nascido a 18 de Dezembro de 1969, em Paranhos, no Porto, o advogado ter-se-á convertido ao judaísmo, numa cerimónia muito reservada, adoptando o nome de David Ariel.

Filho de Ana Maria Roseira Dias Coelho, irmã de Maria de Belém Roseira, antiga candidata à Presidência da República – ex-ministra da Saúde e ex-ministra da Igualdade, nos governos de António Guterres, deputada em várias legislaturas e que já presidiu ao Partido Socialista –, o advogado, com vários livros publicados, é casado com Florbela de Almeida Garrett, quadro do Serviço de Informações e Segurança (SIS).

Contactada pelo PÚBLICO, Maria de Belém admitiu ter “um sobrinho que integra a CIP”, mas garantiu não saber exactamente em que funções. “Não articulei nada com ele [Lei de 2013]”, começou por dizer. “Não faço a mínima ideia que funções tem na comunidade. Mas aquilo que me foi transmitido é que a avaliação dos processos é feita pelo rabinato”, esclareceu.

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Câmara de Lisboa inaugurou em 2008 um memorial às vítimas do massacre judaico de 1506 Pedro Elias

“Na altura [2013] era presidente do PS e entendi que devíamos apresentar uma lei que foi sustentada por todo o grupo parlamentar e, depois, acompanhado por outras bancadas e aprovada por unanimidade”, contou, relembrando que a regulamentação do diploma foi feita já pelo Governo de Passos Coelho (2015).

Pouco tempo depois da sua chegada à CIP, Francisco de Almeida Garrett viu ser aprovada a nova legislação sobre a Lei da Nacionalidade, proposta por Maria de Belém, que permitiu a atribuição da nacionalidade portuguesa por naturalização aos descendentes de judeus sefarditas que provem laços de pertença a Portugal. Uma iniciativa que acabou por reforçar a posição do jurista na comunidade judaica portuense, mantendo ao mesmo tempo uma total discrição para o exterior.

Mais visível tem sido o papel de Yigal Ben Zion que, apesar de viver em Ra’anana, Israel, viaja várias vezes para o Porto para assistir a cerimónias oficiais ou para representar a CIP perante o Estado português, como aconteceu na visita do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, à sinagoga da comunidade, em Janeiro de 2019. Ben Zion cresceu na cidade israelita de Kfar Saba, depois de ter deixado a Turquia. No início de 2017, obteve a nacionalidade portuguesa, como descendente de sefarditas.

Lucros com passaportes

É em Israel que Ben Zion tem os seus negócios e onde lucra com a lei da nacionalidade portuguesa. É dono da empresa C.N. Immigration Agency, LTD, especializada em imigração para o Canadá, mas também na cidadania e obtenção do passaporte português. Em Abril de 2018, participou na Exposição Internacional de Emigração e Propriedades de Luxo, em Moscovo, com uma palestra intitulada “Imigração para o Canadá. Oportunidades de residência e cidadania na Europa”.

Na página da empresa na Internet pode ler-se o comentário de um cliente satisfeito com o serviço prestado, com o título “Arranjei o meu passaporte português!”. Ami Cohen relata a sua experiência: “Graças à CN Immigration, consegui receber o meu passaporte português, que mereço por lei. O procedimento foi surpreendentemente fácil, e o gerente foi muito simpático!”

No negócio da nacionalidade portuguesa movem-se igualmente Eliran Eliahu Graedje e o rabino Joel Zekri. Ambos são sócios com partes iguais na empresa Eliran & Joel, que presta serviços nos processos de certificação e na obtenção da cidadania (o mail da empresa é precisamente nationalityportuguese@gmail.com), mas também oferece consultoria em potenciais negócios para a crescente comunidade judaica do Porto.

O negócio do imobiliário

A par disto, Eliran Graedje – que trocou Israel por Portugal em 2007 e integra a direcção da CIP, pelo menos, desde 2016 – está profundamente envolvido na mediação e promoção imobiliária, através das empresas Enjoyseason, LDA; Neptunesecrets, LDA (ambas constituídas a 3 de Outubro de 2019); Jungle Clover, LDA (em funcionamento desde 26 de Julho de 2018); Pereira & Eliran, LDA (constituída a 10 de Maio 2017 e já dissolvida) e Invicta Portucale XXI, LDA (7 de Julho de 2017).

Já em Fevereiro de 2018, o secretário da CIP congratulava-se com o potencial do negócio e dos lucros, num artigo publicado pelo Jornal de Notícias, com o título “Israelitas ‘à caça’ de investimentos imobiliários no Porto”. No artigo, Eliran Graedje surge com o sócio, Nélson Bento Pereira – partilhavam em partes iguais a empresa Pereira & Joel, extinta a 27 de Setembro desse ano, com Bruno Monteiro Pereira, vereador do PSD na Câmara Municipal de Matosinhos –, garantindo que são muitos os clientes israelitas interessados em investir.

Nos seus escritórios, “aparecem com fundos de investimento de cinco ou dez milhões [de euros], para gastar de uma vez. Mas também particulares dispostos a gastar 400 ou 500 mil euros num edifício”, revela Nélson Pereira, engenheiro civil português, militante do PSD, que é também gerente da sociedade Invicta Portucale XXI, LDA, detida por Eliran Graedge (15%) e pela Piedade Investimentos, SA (70%), da empresária Maria Alves de Oliveira.

“Os judeus gostam de negociar e no Porto podem fazer-se grandes negócios. Pelo que percebemos, em Israel ainda existe muito a prática de aforrar. Qualquer chefe de família, aos 45 anos, já tem meio milhão de euros, o que para nós é muito bom, mas para eles é considerado normal”, contou o secretário da CIP. Os dois sócios revelaram ainda que a obtenção da nacionalidade portuguesa tem proporcionado grande parte destes negócios. Sem essa possibilidade, “muitos nunca investiriam no mercado português”, diz Eliran Graedge, que perspectivava que o Porto pudesse “até vir a ter um bairro judeu” no espaço de cinco anos.

Apesar de Yigal Ben Zion ser o presidente da CIP, é a vice-presidente Isabel Ferreira Lopes quem tem o poder de assinar documentos e contratos que vinculam a entidade. Muito próxima de Francisco de Almeida Garrett – que várias fontes contactadas pelo PÚBLICO sob anonimato garantem ser quem lidera de facto a comunidade –, esta economista, antiga funcionária da Sonae, é neta de Artur Barros Basto, o fundador da CIP nos anos de 1920.

É também Isabel Ferreira Lopes que trata de toda a logística dos certificados, ainda que seja o rabino Daniel Litvak o responsável pela sua verificação. Daniel Litvak passa parte do ano em Israel, onde é o representante da empresa GM Investment and Placement, liderada pelo empresário de Barcelona Manuel Sánchez Bastán. Trata-se de uma corretora especializada em engenharia financeira que opera no mercado internacional.

Denúncias anónimas

A Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou a 19 de Janeiro que está a investigar a concessão da nacionalidade a Roman Abramovich, na sequência de uma investigação do PÚBLICO, através do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DIAP) Regional de Lisboa. Mas as autoridades já tinham sido alertadas anos antes para algumas irregularidades que estariam a ocorrer na CIP, que emitiu o certificado de descendente de judeus sefarditas ao multimilionário, dono do clube de futebol inglês Chelsea.

A 21 de Novembro de 2017, chegou ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) uma queixa anónima, a que o PÚBLICO teve acesso, denunciando Francisco de Almeida Garrett como o autor do articulado do Decreto-Lei n.º 30/A/2015, que regulamentou a atribuição da nacionalidade aos descendentes das antigas comunidades judaicas portuguesas, expulsas pelo rei D. Manuel I. Nesta denúncia, é sublinhado que o advogado tomou o “controlo absoluto da CIP”, que teria uma direcção “artificial” e um “presidente ausente”.

Cartas idênticas foram enviadas em 2020 para vários deputados da Assembleia da República, mas também para o Ministério da Educação, Ministério da Justiça e Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura, estavam a ser debatidas algumas condicionantes à legislação sobre os sefarditas, que acabaram por não seguir em frente.

Até a PGR anunciar a investigação ao caso Abramovich desconhecia-se a existência de qualquer outra diligência relacionada com a CIP.

Na sequência da publicação do processo que levou à naturalização de Roman Abramovich, o PÚBLICO foi convidado pela CIP para uma visita às instalações da comunidade e uma conversa com o rabino Daniel Litvak, responsável pela verificação dos certificados para descendentes de judeus sefarditas, onde seriam explicados os critérios e actuação desta entidade. A visita esteve marcada para dia 13 de Janeiro e serviria também para abordar os temas desenvolvidos nesta investigação. Dois dias antes, o encontro foi cancelado sem qualquer explicação.

Já esta quinta-feira, Francisco de Almeida Garrett respondeu por escrito a algumas perguntas enviadas por email, admitindo ser vogal da direcção desde 2016, mas garantindo não ter tido qualquer tipo de intervenção na lei da nacionalidade para os descendentes de judeus sefarditas e na sua regulamentação. “A CIP entregou ao Governo, em 2013, um parecer dizendo que deveria ser nomeada uma comissão internacional”, sublinhou, referindo que a comunidade “foi convocada pelo Governo PSD/CDS", em 2015, para fazer processos de certificação: “Ninguém da Comunidade conhecia qualquer membro do Governo.”

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