A humanidade dos deuses segundo Wim Vandekeybus
Hands do not touch your precious Me, novo espectáculo do coreógrafo belga, é apresentado este sábado em Guimarães, encerrando a 11.ª edição do festival GUIdance.
É com um espectáculo sobre mitologia, transfiguração, morte e renascimento que se assinala o encerramento da 11.ª edição do GUIdance, o festival internacional de dança contemporânea de Guimarães. Hands do not touch your precious Me é apresentado no Centro Cultural Vila Flor este sábado (21h30) e marca, cinco anos depois, o regresso à cidade minhota de Wim Vandekeybus, nome emblemático da dança belga.
O importante coreógrafo, que está no activo desde 1987, ano em que estreou What the Body Does Not Remember — que em 2010, a propósito da passagem de nieuwZwart por Almada, Aveiro e Braga, o PÚBLICO descrevia como “um ‘big bang’ para a dança contemporânea belga” que, “mesmo à distância, fez estragos no resto da Europa” —, é um dos dez intérpretes da sua própria criação (a 49.ª da sua companhia Ultima Vez), partilhando o palco com Anna Karenina Lambrechts, Borna Babic, Davide Belotti, Lieve Meeussen, Maria Kolegova, Maureen Bator, Mufutau Yusuf, Olivier de Sagazan e Pieter Desmet.
Olivier de Sagazan, artista visual e performer francês de 63 anos (é quatro anos mais velho do que Vandekeybus), cujo trabalho, pode ler-se no site do GUIdance, “assenta na transfiguração do corpo e do rosto”, faz parte deste espectáculo, do qual é um dos responsáveis pelo processo de conceptualização artística, porque, após ter assistido a uma criação da Ultima Vez e ficado impressionado com a sua linguagem, manifestou junto de Wim a vontade de colaborar com o belga — que, ao PÚBLICO, fala de um diálogo que se revelou “complexo”.
Para não se atropelarem uma à outra, duas mentes com a sua dose de poder criativo tiveram de saber dividir tarefas. Vandekeybus admite que, no que a parcerias diz respeito, prefere juntar-se a “pessoas de outras áreas, como arquitectos, escritores ou músicos”. “Basta uma reunião muito curta para se definirem os pormenores do projecto e depois cada um faz a sua coisa”, refere. O facto de desta vez ter trabalhado com alguém que também é do campo das artes performativas tornou talvez mais tenso — e “muito mais longo” — o processo de criação.
Mas a bom porto se chegou. Os confinamentos, reflecte o belga, foram benéficos para a dupla. “A pandemia separou-nos e acabou por separar as nossas ideias, o que foi muito bom”, afirma, salientando que, inicialmente, tanto Wim como Olivier estavam a “proteger em demasia” as suas ideias. “Tem de haver uma confiança mútua para o resultado final ter algum valor. Se não tivéssemos chegado a um entendimento, não teríamos criado um espectáculo colaborativo — simplesmente teríamos feito dois espectáculos diferentes dentro do mesmo projecto”, sintetiza o belga, que, apesar das dificuldades sentidas, não se arrepende de ter abraçado o desafio proposto por de Sagazan. “Muitas vezes, os processos [de criação] mais difíceis são aqueles que levam aos melhores espectáculos”, defende, argumentando que os ensaios começaram a ser mais frutíferos quando ficou estabelecido que Vandekeybus seria o principal responsável pela direcção de Hands do not touch your precious Me.
Pode parecer que este título remete para a actual crise sanitária que vivemos — temos de cuidar do nosso corpo como se de um santuário se tratasse, protegendo-o das perigosas mãos do “outro”, o intruso, o contaminador —, mas a verdade é que Hands do not touch your precious Me é um verso de um louvor escrito pela sacerdotisa Enheduanna a Inanna, deusa mesopotâmica ligada ao amor e ao erotismo. O espectáculo, cuja música foi escrita pela compositora espanhola Charo Calvo, tem como protagonistas essa entidade mitológica e a sua irmã — que é como que arrastada para o submundo, tornando-se a “face perversa” de Inanna.
Vandekeybus sustenta que os deuses e as deusas não são mais do que “projecções nossas”, “coisas idealistas” que, apesar de tudo, são “muito humanas”. Quererá isto dizer que a excelência que simbolizam está ao nosso alcance e que só por uma espécie de preguiça é que não a alcançamos?