Carlos Antunes e Désirée Pedro sobre a Casa de Saúde Rainha Santa Isabel, uma “pequena cidade”
O podcast No País dos Arquitectos é um dos parceiros da Rede PÚBLICO.
O podcast No País dos Arquitectos está de regresso com uma terceira temporada. No 26.º episódio, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitectura Building Pictures, conversa com os arquitectos Carlos Antunes e Désirée Pedro sobre a Casa de Saúde Rainha Santa Isabel, em Condeixa-a-Nova (Coimbra). Nos últimos dois anos, sabe-se que a pandemia tem produzido efeitos na saúde mental das pessoas e este episódio revela como os arquitectos têm o papel de cuidar e zelar pelos espaços, em particular aqueles “onde é menos previsível que esse mesmo zelo aconteça”.
Este projecto surge na sequência da reabilitação e da ampliação do edifício Bento Menni, em Condeixa-a-Nova. Partindo de uma uma estrutura inadequada, que não satisfazia as necessidades de uma unidade de saúde, os arquitectos do Atelier do Corvo fizeram mudanças substanciais. Quando se deslocaram, pela primeira vez, ao edifício, a arquitecta Désirée Pedro lembra a frieza dos espaços e “a desolação dos materiais”. Já Carlos Antunes ficou com a sensação de ter sido transportado para o filme Voando Sobre um Ninho de Cucos. Esse lugar, que remetia para a imagem de abandono, nunca saiu da memória de ambos. Foi nesse sentido que procuraram “criar um ambiente que fosse confortável física e mentalmente”, de modo a “dignificar a vida daquelas pessoas”.
Porém, outras anomalias viriam a surgir. Desta vez, não ao nível da decrepitude da estrutura inicial, mas sim no contexto das mentalidades. Carlos Antunes lembra de um comentário feito por uma das técnicas responsáveis pelo instituto: “Eu penso que a solução apresentada pelos arquitectos é boa demais para estas pessoas”. A afirmação causou algum choque, tendo em conta que foi dita “por alguém que está dentro da unidade” e que assume responsabilidade por aquelas pessoas: “Isto é muito assustador e revela o quão fundamental é a presença dos arquitectos, em territórios ainda hostis à arquitectura culta”, sublinha o arquitecto.
É neste clima de consternação que ambos reconhecem que existe um longo caminho a trilhar naquilo que chamam literacia espacial: “Na Arquitectura, o nosso papel como arquitectos é respeitar absolutamente e dignificar a vida tão frágil daquelas pessoas e, para além disso, projectar para aquelas pessoas como projectamos para qualquer pessoa. Este pensamento de que aquelas pessoas não merecem uma arquitectura tão boa é algo que nos deixou profundamente chocados.” Carlos Antunes e Désirée Pedro explicam que, ao serem confrontados com estas situações, “era como se entrassem numa missão impossível”.
Conscientes de que a vida daquelas pessoas passaria a concentrar-se naquele edifício, os arquitectos viram aqui a oportunidade de projectar um espaço que simbolizasse a própria casa dos pacientes e deram ênfase à forma como a luz poderia comunicar em diferentes ambientes: em determinados momentos, através da luz zenital, que confere solenidade às capelas mortuárias, noutros momentos nas bow windows, que “são espaços que estão dentro, mas que ao mesmo tempo estão fora”. Esta possibilidade de um edifício ser cruzado por vários níveis de intimidade faz com que, por um lado, exista uma dicotomia entre o que é público e o que é privado, e, simultaneamente, haja a possibilidade de andar lado a lado.
Para evocar o sentimento de pertença, existe igualmente uma citação do fundador que se encontra no átrio e que foi escolhida juntamente com as Irmãs Hospitaleiras de Condeixa, uma congregação da igreja católica especializada na prestação de cuidados para doenças mentais: “Uma pessoa vale mais do que o mundo inteiro.” Désirée Pedro acrescenta que “esta congregação é a primeira congregação em Portugal dedicada à doença mental”. A congregação começou em Espanha e, na altura em que foi fundada, dedicava-se sobretudo à doença mental feminina: “Pareceu-nos que esta frase deveria estar no átrio por ter uma dimensão simbólica e institucional muito grande. As palavras foram feitas com molde para serem impressas no betão (...), e, assim, darem a sensação de estarem gravadas em pedra”, assinala a arquitecta.
O novo programa implicou o aumento da área de implantação do edifício, a incorporação de um piso adicional e, claro, a reorganização espacial com a possibilidade de criar áreas de circulação, que permitissem que a luz modelasse “o próprio espaço”. Como se fosse “um maciço rochoso, uma montanha artificial”, o edifício assume uma representatividade que outrora não tinha. Na escala deste conjunto edificado, existem três edifícios, onde estão diariamente cerca de 800 pessoas. Tendo em conta a dimensão dos lugares sociais, os arquitectos consideraram que “o átrio deveria ser um lugar de representatividade do conjunto”, na sua relação entre o exterior e o interior. Para além disso, procuraram transformar a unidade numa “pequena cidade”, que zelasse pelo bem-estar de vidas humanas, que, tantas vezes, se encontram em situações profundamente frágeis. “Algumas delas estão, inclusive, no limite da sobrevivência” e “vêm de diferentes backgrounds económicos e sociais”.
Por entenderem que os arquitectos deveriam estar deontologicamente obrigados a defender a arquitectura, Carlos Antunes propõe que deveria ser feito um “Juramento de Vitrúvio”, por analogia com o Juramento de Hipócrates, a que os médicos são submetidos: “Como em todas as disciplinas, o mundo é cada vez mais complexo e cada um de nós deve contribuir e deve cumprir o seu parco papel.”
No País dos Arquitectos é um dos podcasts da Rede PÚBLICO. Produzido pela Building Pictures, criada com a missão de aproximar as pessoas da arquitectura, é um território onde as conversas de arquitectura são uma oportunidade para conhecer os arquitectos, os projectos e as histórias por detrás da arquitectura portuguesa de referência.
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