A Europa do amanhã começa hoje. As propostas dos cidadãos terão futuro?
Perguntámos à eurodeputada Marisa Matias o que pensa de várias propostas dos cidadãos europeus, como a criação de uma Constituição Europeia, a possibilidade de listas transnacionais para o Parlamento Europeu ou o voto electrónico.
Quando, a 10 de Março de 2021, os presidentes da Comissão, do Conselho e do Parlamento assinaram a declaração que criou a Conferência sobre o Futuro da Europa, David Sassoli, então líder do Parlamento Europeu (PE), definiu a iniciativa como uma “oportunidade para redescobrir a alma do projecto europeu”: “Convidamos todos os cidadãos europeus a participarem na conferência e a construírem a Europa de amanhã.”
O mote estava lançado. Menos de um ano depois, os cidadãos responderam. Além das 800 pessoas que têm participado nos quatro Painéis de Cidadãos, têm chegado propostas provenientes de todos os lados da União, através da plataforma da Conferência.
Enquanto o processo decorre – e perante a dúvida sobre se as recomendações terão aplicação efectiva –, o PÚBLICO reuniu alguns dos contributos mais partilhados e instou Marisa Matias, eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda, a reflectir sobre as iniciativas.
“É preciso abrir mais as portas. Promover mais participação e não fazer apenas dessa participação um exercício retórico, mas que tenha consequências”, começa por dizer a deputada no PE, considerando necessário “aumentar o envolvimento das pessoas”, perante a tendência das “instituições em fecharem-se entre paredes”.
Para quebrar os muros que separam os cidadãos dos corredores europeus, é comum abrir-se a discussão sobre o voto electrónico. Inclusive, uma das recomendações do segundo Painel de Cidadãos (dedicado à democracia) é a criação de uma “plataforma digital onde os europeus possam votar em eleições e em sondagens” sobre “questões importantes”.
O assunto levanta reservas a Marisa Matias: “Não digo ‘não’ a nenhuma alternativa, mas tendo em conta os debates que temos feito sobre esta matéria ainda há um caminho a fazer”, defende, considerado “fundamental” a segurança e a “confiança” no processo eleitoral para que o “resultado não levante a mínima dúvida”.
A eurodeputada assinala também a dificuldade de encontrar uma “receita única para toda a União Europeia (UE)” quando existem “sistemas eleitorais muito diferentes” de país para país. Também por isso, outra das propostas mais comuns entre os europeus, presente nas sugestões deixadas na plataforma e nas deliberações finais do Painel de Cidadãos, é a uniformização do sistema eleitoral na UE.
“Tendo culturas tão diferentes e sistemas eleitorais tão diferentes pode ser apressado e contraproducente tentar uniformizar um sistema para as eleições europeias”, alerta a bloquista. Trata-se de uma “formalidade” que “não faz aumentar a participação” eleitoral, advoga.
A eurodeputada, que integra o Grupo da Esquerda, também discorda da possibilidade de existirem listas transnacionais na eleição para o PE – outra das propostas mais reivindicadas pelos cidadãos, quer no Painel de Cidadãos, quer na plataforma. O risco, diz, é “reforçar o poder de uns países sobre os outros”.
“É muito provável que nessas listas caibam muitos mais franceses e alemães do que propriamente portugueses ou cipriotas.” E se existirem duas listas, uma transnacional e outra nacional na mesma eleição? “Corremos o risco de criar deputados de primeira e de segunda”, retorque a deputada.
Como “reforçar a democracia e a igualdade”?
Existem, contudo, recomendações que saíram do segundo Painel de Cidadãos que merecem a concordância de Marisa Matias. A começar pela primeira, que apela à atribuição de incentivos ou subsídios para empresas que cumpram “critérios antidiscriminação no mercado de trabalho”, com “quotas para jovens, idosos, mulheres, minorias”.
“Devemos sempre considerar a existência de medidas de discriminação positiva”, afirma. Ressalva, contudo, a necessidade de “estudar” o assunto para “perceber que tipo de subsídios ou critérios estariam em causa”.
A eurodeputada defende também o fim da unanimidade necessária para o Conselho Europeu tomar decisões. “Exigindo unanimidade em problemas de Estado de direito, haverá sempre a oposição dos países que violam esses princípios”, afirma, corroborando aquela que é uma das queixas mais recorrentes dos cidadãos na plataforma da Conferência.
É precisamente nessa plataforma, na área da democracia na Europa, que um cidadão sugeriu criar um mecanismo ou entidade que avalie o Estado de direito em todos os países, com o poder de exigir o cumprimento de determinadas regras e de aplicar sanções em caso de incumprimento (iniciativa semelhante já tinha sido defendida por Paulo Rangel em declarações ao PÚBLICO).
Para Marisa Matias, tal entidade é desnecessária porque o respeito pelo Estado de direito já está contemplado nos tratados da União. O problema, argumenta, é que o “quadro legal não tem sido respeitado”.
“É preciso pôr em prática as decisões que têm vindo as ser tomadas e que infelizmente têm ficado muitas vezes na gaveta”, diz, referindo-se ao artigo sétimo do Tratado da União que já foi accionado contra a Polónia e a Hungria, mas sem consequência devido à tal unanimidade necessária no interior do Conselho.
Para “evitar conflitos com os Estados-membros” e para “dar prioridade à inclusão dos direitos humanos e dos valores democráticos”, o Painel de Cidadãos recomendou às instituições “reabrir o debate” sobre a criação de uma Constituição Europeia.
Para Marisa Matias, a criação de uma Constituição poderia aumentar as desigualdades, uma vez que a UE corre a “várias velocidades” e assenta num “poder excessivo de alguns países sobre os outros”. “A mim preocupa-me mais como podemos reforçar a democracia e a igualdade entre os Estados-membros.”