Peixes populares, baratos e cheios de sabor, com o chef Luís Barradas
O peixe-agulha, a pata-roxa e o horroroso xarroco são muito apreciados em terras que têm grande tradição piscatória. E por uma razão simples: os pescadores, os peixeiros e certos consumidores sabem muito de peixe. Por esse motivo pedimos ao chef Luís Barradas algumas receitas bem simples para que até um aprendiz de cozinha possa surpreender a família e os amigos. E sem gastar muito dinheiro.
A experiência diz-nos que existem dois requisitos recomendáveis para um chef trabalhar bem o peixe: um, saber pescar; dois, conhecer “tu cá, tu lá” a maioria dos peixeiros da praça próxima do seu local de trabalho. Nesta matéria, se tivéssemos de dar uma nota a Luís Barradas – chef consultor no Wine Corner, em Azeitão –, nunca seria inferior a 18. Isto porque ainda é novo e não se dá um 19 ou um 20 por dá cá aquela palha. É natural de Setúbal e tem como hobbies fazer caça submarina e conversar com peixeiras e peixeiros que vendem no Mercado do Livramento, em Setúbal, há 10, 20, 30 ou mais anos. Gente que sabe muito.
E o facto de o chef ter tombado de amores muito cedo pela cozinha japonesa só melhorou as coisas. Acreditamos que, se lhe vendássemos os olhos e lhe pedíssemos que identificasse cada peixe que lhe puséssemos à frente pelo toque no lombo, as falhas seriam muito poucas. Há dias vimo-lo de volta de um de peixe-agulha, muito apreciado no Algarve depois de seco ao sol. Nalguns cafés da região ainda se permite que o cliente leve o seu peixe-agulha seco para petiscar, em troca da compra de algumas minis ou copos de três. Por ser barato e abundante, era – e ainda é – um peixe popular. É raro ver-se semelhante peixe em Lisboa ou no norte do país, mas, no Mercado do Livramento, o grande mercado de peixe do país no que diz respeito à variedade de espécies e à exigência dos clientes, é fácil encontrar-se peixe-agulha.
Manipulando o peixe na cozinha do Wine Corner, a dada altura diz-nos Luís Barradas, muito baixinho: “Cá está um bom exemplo de hikarimono.” Exemplo de quê mesmo? “Os japoneses têm muitas formas de classificar os peixes, e uma delas é pela cor. Quanto mais brilhante é a cor, mais valorizado é o peixe. E, neste caso, o azul brilhante que vemos na pele do peixe-agulha quer dizer que é um bom exemplar de hikarimono.” Na, prática, hikarimono quer dizer “coisa brilhante”.
Dar brilho aos peixes menosprezados
Depois de ter separado o peixe-agulha em dois filetes bem limpos de espinhas, Luís coloca-os numa cura de sal e açúcar durante cerca de 10 minutos. Retira-os para os meter numa vinagreta desejavelmente suave e com um pouco de mirin (vinho de arroz com álcool baixo, mas bastante açúcar). Na hora de servir, corta-se o filete em pequenos pedaços, que serão acompanhados por um picle de rábano vermelho (daqueles alentejanos), ovas do peixe que passaram por uma salmoura breve e depois temperadas com soja e mirin. Por cima de tudo, rebentos de aipo. E está feita a entrada, em estilo asiático.
Passemos então ao xarroco, peixe que é capaz de fazer um tamboril parecer bonito. Deve, alias, estar no top 3 dos peixes mais feios que já comemos, com a pele sempre untada com um muco viscoso, mas, lá está, saboroso e barato. E o curioso é que o xarroco, cujo nome científico é Halobatrachus didactulus (já não lhe bastava o aspecto), em Espanha é conhecido como sapo lusitánico, em França chamam-lhe crapaud lusitanien e em Inglaterra é o Lusitanian toadfish.
Desmanchado o xarroco em filetes, Luís Barradas passou-os por um polme e fritou-os. Simples. E o que pedem os filetes? Um arroz carolino perfumado com limão, pó de algas (dulse e alface-do-mar) à volta e rebentos de coentro. Um prato bastante guloso por via do arroz cremoso.
A pata-roxa é um peixe sem o qual uma família tradicional de Setúbal ou de Sesimbra e adepta de caldeiradas não vive. Pode faltar tamboril, safio ou raia, mas, sem pata-roxa não há caldeirada para ninguém. Trata-se de um pequeno tubarão que, de acordo com literatura disponibilizada pelo Oceanário de Lisboa, vive à moda do sistema de ensino do tempo da outra senhora: machos para um lado e fêmeas para o outro. Só se juntam na primavera, para o acasalamento. Cada fêmea deposita os ovos em algas, protegidos por uma cápsula rija, e demoram cinco a onze meses a eclodir, conforme a temperatura das águas. Como curiosidade, as fêmeas têm um comportamento dito filopátrico, o que significa que regressam sempre ao local onde nasceram.
Com a pata-roxa, Luís Barradas faz aquilo que na gíria se chamará caldeirada desconstruída. Ou seja, como a caldeirada não é propriamente um prato bonito, o chef prepara o prato por fases e depois, na hora de servir, junta os ingredientes todos. Resultado, todo o sabor da caldeirada, mas com apresentação requintada.
Começa-se por filetar o peixe, reservando as espinhas. Estas e outras partes menos nobres vão para um tacho, juntamente com os ingredientes habituais da caldeirada: cebola, alho, tomate, pimento, salsa e azeite. Uma vez cozidos, retiram-se as espinhas e, com uma varinha mágica, tritura-se o caldo. Neste preparado ainda quente acrescentam-se os fígados do peixe (o melhor intensificador de sabor do mundo) e reduz-se tudo a um creme.
Quanto ao peixe, tempera-se os filetes com um piso de coentros, poejo, sal e pimenta, que serão fritos em azeite (o forno pode ser uma alternativa). Durante este tempo frita-se uma fatia de pão em azeite e salteiam-se rapidamente pimentos em juliana. Na altura de servir é uma fatia de pão no fundo, juliana por cima e, por fim, o filete de peixe e rebentos de coentros a gosto. Resultado, dá vontade de pedir à cozinha para enfrascar um litro do caldo da caldeirada e levar para casa porque, com ele, faríamos grande figura perante os amigos.
Portanto, caro leitor, da próxima vez que for à praça, esqueça por um dia “robalo, dourada & companhia” e dê uma oportunidade a outras espécies. Ainda nos vai agradecer a poupança na carteira. Em alternativa, passe pelo Wine Corner.