O solitário destino do Donbass após a guerra fratricida
Desde 2014 que a Ucrânia ficou sem o controlo de grande parte do Donbass, ocupado por milícias pró-russas. As populações que permanecem na linha da frente dos combates habituaram-se a conviver com os soldados.
A aldeia Zolote-3, construída em torno da grande mina de carvão, com as suas tradicionais vivendas de madeira e rodeada por colinas e pequenas florestas agora cobertas de neve, foi um local comunitário que a guerra destruiu de vez.
Até há pouco, esta localidade, com nome idêntico às restantes quatro desta região da província de Lugansk, leste da Ucrânia, acolhia cinco mil habitantes. Era uma aldeia de mineiros, e das suas famílias, como as restantes. Com a guerra entre o exército ucraniano, apoiado por milícias paramilitares, e os contingentes armados dos separatistas russófonos, acalentados por Moscovo, quatro localidades ficaram do “lado ucraniano” linha de separação.
Imersa numa vastidão que parece infinita, e apesar do duro trabalho no subsolo da mina, Zolote-3 era um local tranquilo e aprazível. Hoje, quase oito anos após o início da guerra civil e por estar incluída numa das mais acérrimas zonas de disputa territorial, apenas restam algumas centenas de habitantes.
Num silêncio quase transcendente, com pequenos flocos de neve a reforçaram a camada de neve fina, apenas o ladrar dos cães, ou uma outra chaminé a fumegar. De resto, desolação total.
A maioria das tradicionais vivendas de madeira foram abandonadas, os telhados em ruínas, a porta da entrada das cercas ou das casas ficaram escancaradas, as arrecadações vazias, alguma roupa ainda nos estendais, ou a lenha cortada e amontoada esquecida no meio de um caminho.
Surgem três soldados do exército ucraniano, equipados com fardamento militar, um deles com uma metralhadora automática e silenciador. Ocupam uma das casas que foi abandonada pelos mineiros, e são de poucas palavras. O seu chefe, de cigarro em punho, diz que foram mandatados para uma “missão secreta”, e pouco depois saem em patrulha, a bordo de uma velha carrinha. Sem mais palavras.
“A 800 metros fica a linha de contacto, a linha da frente, e a República Popular de Lugansk”, precisam alguns acompanhantes ao grupo de jornalistas que passeou por este vestígio do irredentismo e numa referência ao autoproclamado território separatista, vizinho da também secessionista Donetsk.
Apenas a Zolote-5 ficou em “território ocupado”, a designação dos responsáveis locais para as regiões controladas pelos “pró-russos”. Mas a desolação é comum, enquanto o vocabulário oficial se mantém intransigente no objectivo de recuperar a integridade territorial.
Contrariar a propaganda do inimigo surge como uma das principais obsessões dos responsáveis locais, devido à avalanche de noticiários provenientes da vizinha Rússia, o “país agressor”. E que tem de ser contrariada, a todo o custo. Esta guerra é também mediática, e os dois lados rivalizam com a instalação de antenas emissoras com o raio de acção mais eficaz.
“Cerca de metade do território da região de Lugansk está ocupado, como sucede com Donetsk. A maioria das indústrias e da população ficou ‘do outro lado’ o que implica pesados custos para o desenvolvimento desta região. Também em Donetsk, com um terço da área ocupada, mas onde se situam os maiores complexos industriais”, reconhece Iaroslav Pistun, um dos responsáveis militares da região, agora com sede em Severodonetsk.
Saudades do circo
Após a tomada da capital regional Lugansk pelos separatistas, a administração ucraniana instalou-se nesta cidade que ultrapassa os 100 mil habitantes e conhecida pela sua pujante indústria química, em particular fertilizantes.
“Glória à Ucrânia! Glória aos heróis”, assinala a azul e branco a grande faixa colocada no edifício de quatro andares do poder local, onde um grande ecrã colorido também transmite mensagens de tonalidade patriótica.
No átrio, um painel com fotos de dezenas de combatentes, caídos no confronto com as milícias separatistas e que desde 2014 já provocaram cerca de 14 mil mortos, milhares de feridos, 1,5 milhões de deslocados internos. Nos dois lados da barricada.
Neste encontro matutino, o chefe administrativo local, Oleksii Smirnov, tinha já divulgado os últimos dados vindos do “terreno”, em particular a “contínua violação do cessar-fogo”, os “500 bombardeamentos do outro lado” deste o início do mês, as mais de 400 infra-estruturas danificadas, a dificuldade em manter activos os postos de controlo da “linha de contacto”, essa terra de ninguém.
Na Lugansk ucraniana acabaram por se fixar 660 mil pessoas, contra 1,4 milhões que permanece do outro lado da linha, reconhece Smirnov. Mas sem nunca desistir de revelar a sua estratégia de sedução.
“A vida aqui é melhor que nos territórios ocupados. Aqui podem vacinar-se, abastecer-se”, assegura. “O que ‘eles’ pretendem é evitar que a população que ficou do outro lado se aperceba disso”, prossegue, numa referência à população russófona que optou pela separação violenta.
“Nunca houve estradas tão boas aqui, nem mesmo antes da guerra”, prossegue o funcionário após revelar um rol de investimentos numa cidade e região que permanece um dos bastiões da linha da frente do orgulho nacional ucraniano, mas onde ainda subsiste uma estátua de Dmitri Mendelev, o inventor da primeira versão da tabela periódica dos elementos químicos, e de origem russa.
“A segurança da Europa depende da segurança na região de Lugansk!”, resume o responsável político da região, com suficiente convicção.
Severodonetsk, nova “capital” que se pretende provisória, é uma cidade muito extensa, implantada nas vastas planícies de um país em busca definitiva da sua identidade e onde ainda prevalecem intensos sinais de um passado muito recente, quando era república soviética, com velhos Lada e Moskvitch ainda a circularem pelas estradas delimitadas pela neve, em desigual competição com os actuais modelos ocidentais ou asiáticos.
Este é o coração da bacia do Donbass, integrada no império russo no final do século XVII e núcleo da industrialização da Rússia desde o final do século XIX, uma vasta zona carbonífera que na época soviética se tornou num dos símbolos do país, muito impulsionado pela propaganda.
Propaganda, propaganda... Hoje, a obsessão ucraniana face ao antigo irmão russo. Que também tenta ser contrariada na pequena localidade de Hirska por Oleksi Babchenko, responsável local, mobilizador das milícias populares que se prepararam para a eventual invasão russa, mas onde 75% da população que restou tem mais de 65 anos.
A linha da frente já não está longe, e Babchenko foi eleito ao estatuto de herói nacional por ter conseguido retirar com vida muitos dos homens que comandava durante a prolongada e sangrenta batalha pelo controlo do aeroporto de Donetsk, com desfecho final favorável às milícias pró-russas no início de 2015.
São as verdades aqui divulgadas, mas que também poderão ser reveladas, de outra forma, ou de forma quase semelhante, do lado de lá da linha da frente. Mas de um e de outro lado, e quando as pulsões nacionalistas fraquejarem, e os apoios prometidos faltarem, talvez acabem por entender que afinal estão, ambos, entregues a si próprios. Como as cinco aldeias Zolote.
No final da tarde, Vika e Nadia, amigas e ambas com 13 anos, passeiam-se pelas ruas de Severodonetsk, e são interpeladas. “Não penso que vai haver invasão, porque já se fala há muito tempo. Mas tenho medo de ser obrigada a sair da cidade”, diz uma delas. “Uma das coisas que aqui mais sentimos falta é um espectáculo de circo”.
A Lusa viajou para a Ucrânia a convite da Academia de Imprensa Ucraniana em colaboração com a Embaixada dos Estados Unidos em Kiev