Pela campanha “lá vamos, cantando e rindo”
Makas de uma angolana 11 Perante o que vimos e ouvimos na campanha, é imperativo refletirmos se nós, as minorias, já não esperámos o tempo suficiente pela total revolução das mentalidades.
Há coisas que não são tão difíceis de se fazerem sentir. Dizer e falar continuam a ser atos performativos que codificam nas palavras a identidade de quem as enuncia.
Sentada em frente ao televisor, por estes dias torna-se difícil encontrar no zapping um refúgio silencioso que nos poupe aos enunciados políticos e à sucessão de ecos distintos produzidos por líderes partidários crentes que, cavalgando o desígnio da criação de uma corrente de opinião, entesam-se numa retórica linguística acinte e negativa que, em André Ventura, líder do pequeno partido Chega, se faz contínua nos gestos e na expressão facial, quem sabe animado pelas memórias de infância do “Action Man”, num combate bruto e simultaneamente casto aos que Ventura projeta como “maus” portugueses.
Ao contrário de Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, que nos entra pelo ecrã como que saída de um daytime líder de audiências com um look total makeover a exibir um sorriso com o desígnio de “Barbie Salvadora”, André Ventura não sucumbe aos sorrisos plásticos sempre que sobe ao púlpito. Enquanto a Barbie Salvadora procura inspirar Catarina Martins que assume as madeixas e o corte de cabelo como uma verdadeira mudança que lhe toma até a expressão facial, o “Action Man” veste-se de homem sério, despertando o romeiro “Ninguém” nesta campanha onde só expressa simpatia nas ruas, ao acenar às janelas, mesmo que vazias, mesmo quando agitadas por divergentes.
Sobre Barbie Salvadora é justo dizer que a candidata Catarina Martins não faltou a nenhum tutorial de 12 horas sobre a grande tendência destas semanas de campanha, o sorriso estilo “Rioconda” que viralizou o país constituindo-se como a mais nova “trend” de moda e “lifestyle” conjugado no “tempo” e no “modo”.
A tática do estilo Rioconda corta a direito para recuperar a dimensão comunitária do riso e, talvez inspirado na teoria de Bergson sobre o riso como uma necessidade de eco, rir a todo o tempo e por qualquer motivo permite criar uma bolha de empatia coletiva – ainda que o coletivo não distinga de que se ri afinal Rioconda: se do que diz, se do que nós acreditamos ou se do que sorrateiramente omite. Destro, naquela expressão tão típica dos irmãos Metralha, Rioconda, numa semelhança de Rui Rio, líder do Partido Social-Democrata (um dos dois partidos do arco do governo) afirma não ser um político, mas um fazedor de campanhas indo de feira em mercado, de comícios a arruadas.
E Rioconda vai contando os dias para o discurso final, onde quem sabe incluirá aquela citação do palhaço triste protagonizado por Joaquin Phoenix no filme “Joker”, de Todd Philips: “I’m not political. I’m just trying to make people laugh.”
E Rioconda segue o discurso, confirmando-se como uma caricatura bem conseguida em período pandémico, quiçá endémico, fazendo-nos sonhar com a fortuna numa raspadinha. Raspa-se, raspa-se, raspa-se; decalca-se, decalca-se, decalca-se sempre à espera que no fim saia António Costa, o fetiche dos oito líderes partidários com assento na Assembleia da República.
Se à direita de Catarina Martins há um João Oliveira capaz, a mostrar saber de cor o diário de um comunista partidário, à esquerda da líder do Bloco de Esquerda senta-se um especialista em dissidências, Rui Tavares, líder do Livre, a provar que o círculo é quadrado e que a força das palavras pode bem colocá-lo no lugar onde sempre quis estar. Sem artefactos, apenas argumentos sólidos, inteligentes e planeados o suficiente para que após dois ou três frente-a-frentes se descolasse da herança pesada da candidata que em 2019 escolheu para ser o seu espelho, mas que, como Narciso mirando o feito de “deputada eleita”, desequilibrou-se e caiu nas margens do caudal em que se afogou.
Ao centro, mais à esquerda e no extremo menos à direita, está Inês Sousa Real e o seu PAN, partido das Pessoas Animais e Natureza, numa defesa leal de um programa ideológico, por vezes doutrinário, mas revelando-se fortemente humanista, ecologista e ambientalista.
Ao compasso de Amália e do Tiro Liro Liro, na arena circular do circo feito rotunda surgem ruas despovoadas de avenidas, prova de um inverno demográfico a confirmar uma desertificação conjuntural. Os homens de bandeira e linhas azuis “(…) Juntaram-se os dois à esquina/ A tocar a concertina, a dançar o solidó”, enquanto desafiavam-se no jogo de passar mesmo em cima da gravata, desculpem, sinal verde. Do inteligente e bem preparado João Cotrim de Figueiredo, líder do Iniciativa Liberal, que só se assusta com a medida da sua barrida, ao jovem encantador de cavalos Francisco Rodrigues dos Santos, presidente do CDS-PP, que cedo aprendeu que a guerra faz-se de contar espingarda, o ideário de ambos transporta um país a navegar em sal pelo tanto de mar com que se ergueu Portugal. Sendo imperativa a promessa legada a quem segue a direito a Mensagem, ambos retorquem: “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”
E vem-me à memória a frase batida do homem que sabe a estrada que andou e o estreitamento de estrada onde se encontra; que sabe o quanto os ventos e mares o poderão impedir de continuar e que, sendo também ele uma minoria a quem a melanina torna sempre mais difícil provar o mérito, nasceu sabendo que o hoje será sempre o primeiro dia do resto da sua vida. António Costa, atual primeiro-ministro e líder do Partido Socialista, no poder desde 2016, o otimista e esperançoso que nunca ficou num canto da sala, não por vaidade, mas por autodeterminação, segue submetendo a sua vontade de fazer da campanha uma sala de estar pautada por conversas acerca de, por exemplo, o conto encantado da Igualdade, à lógica negacionista onde imperam os interesses do capital. Não raras vezes as forças de produção se tornam forças produtivas e os comícios, as arruadas, a carne assada acabam por ditar que a exigência mediática do popular se eleve à reserva da democracia nos seus direitos e deveres, como o do direito a assegurar a preservação da saúde pública.
E é nesta altura que, depois de escutar um pincel de notas que pautam as coligações populares, logo me veio à memória o hino em que se entoava “Lá vamos, cantando e rindo/ Levados levados sim/ Pela voz do som tremendo/ Das tubas clamor sem fim/ Lá vamos que o sonho é lindo (…)”.
Feitas as contas, a revolução das mentalidades ainda precisa de tempo e, por vezes, o tempo faz-nos sentir como se estivéssemos no Estado Novo, onde o hino da mocidade portuguesa se cantava a um Portugal de gente feliz com lágrimas. Perante isto, é imperativo refletirmos se nós, as minorias, já não esperámos o tempo suficiente pela total revolução das mentalidades.
No dia 30, sem demagogias ou cisões, não nos esqueçamos de uma das poucas afirmações humanistas e altruístas que marcaram esta campanha: “Obviamente preocupo-me consigo (…). Para mim os seres humanos são todos iguais, são todos iguais. Eu preocupo-me consigo como com todos os outros portugueses.”
No dia 30, sem retóricas nem exclusões, que do nosso lado nos preocupemos também com quem assume se preocupar com todos os portugueses, mesmo com as minorias a quem também se dirige num ato linguístico que é sempre performativo, isto é, que nos revela não só o que das minorias diz, mas também o que por elas, se importando, sente.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico