Pandemia, endemia: o fim de uma e o princípio da outra são difíceis de distinguir
A sociedade está cansada e quer um ponto final, mas evolução do vírus SARS-CoV-2 e da covid-19 ainda não terminou. Temos, pelo menos, dois a quatro anos de espera para ver se se torna mais previsível e menos agressivo, dizem especialistas.
A nossa visão sobre o que é estarmos numa pandemia, se estamos no fim ou no começo, é como descascar uma cebola, diz Jorge Varanda. “Vamos descascando, descascando, sabendo mais, mas nunca chegamos ao caroço, porque a cebola não tem caroço.” O que quer isto dizer? “Provavelmente nunca vamos conseguir chegar à origem, nem teremos um acordo acerca do fim, porque haverá diferentes interpretações”, explica o professor de Antropologia da Saúde no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra.
Apesar do elevadíssimo número de casos diários, o facto de a mortalidade não acompanhar a subida a pique da incidência da covid-19 – graças à vacinação e a uma variante, a Ómicron, que causa doença mais ligeira – começou-se a discutir se o fim da pandemia estaria à vista, se poderíamos passar a considerar a doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 como uma endemia.
A Espanha defende que em breve será possível vigiar o coronavírus como fazemos com a gripe. E o Governo britânico anunciou que, a partir da próxima semana, caem as medidas de emergência impostas por causa da Ómicron — como o uso de máscaras nos transportes e nas lojas e o teletrabalho —, apesar de o Serviço Nacional de Saúde britânico estar sob uma enorme pressão. O secretário da Associação Médica Britânica, Chaand Nagpaul, avisou que se pode “criar um falso sentimento de segurança” e provocar um aumento de casos de covid-19. A Dinamarca levantou também restrições — numa altura em que o número de casos diários e de internamentos bate recordes.
Perante este cenário, podemos dizer que a pandemia está a chegar ao fim?
“É muito difícil dizer se estamos a chegar ao fim. Há muitas incertezas. Baseando-me no meu conhecimento de epidemias do passado, diria que nos estamos a iludir se dissermos que a pandemia está a terminar”, disse ao PÚBLICO Dora Vargha, da Universidade de Exeter (Reino Unido), historiadora da medicina envolvida num projecto sobre as narrativas do fim das epidemias.
“O fim não está à vista, por enquanto”, afirma Jaime Nina, investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em Lisboa. “Podemos é mudar o nome, passar de epidémico para endémico. Mas há infecções que, sendo endémicas, continuam a matar milhares ou milhões de pessoas. Basta pensar na tuberculose ou na malária, ou na sida. É mais uma questão de nomenclatura.”
Previsibilidade
“As pessoas estão a discutir quando é que a covid-19 se vai tornar endémica. Pelas definições da epidemiologia, isto é errado, porque é evidente que a doença já é endémica. Dizemos que existe uma endemia sempre que uma doença, transmissível ou não, está instalada na comunidade, no sentido de que em qualquer altura podemos ter casos. Isto é a definição de endemismo, que não é a que está a ser usada pelas pessoas em geral”, avisa o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
“O vírus SARS-CoV-2 está endémico em Portugal, como de resto em todo o planeta, desde Março de 2020”, completa.
“O que as pessoas querem dizer, mas não sabem verbalizar, é o seguinte: quando é que esta doença, que é endémica e não nos vamos ver livres dela, começa a adquirir um padrão previsível?”, afirma Manuel Carmo Gomes. Um padrão de número de casos por dia, ao longo do ano, que se possa prever — como se passa, por exemplo, com a gripe. “A gripe é endémica, mas também é epidémica, sabemos que numa determinada altura do ano os casos começam a subir e vão até um certo número de milhares de casos por dia, ao longo de uma série de semanas. E até conseguimos dizer quando é que se desvia muito para cima ou muito para baixo disto...”, explica.
“Quando isso acontece, dizemos que a doença é endémica com um padrão estabelecido que é previsível. O problema com o SARS-CoV-2 é que é um vírus endémico, mas não estabeleceu ainda o seu padrão regular”, diz Manuel Carmo Gomes. “Quanto tempo é que vai levar até que isso aconteça, ninguém tem resposta. Com base na minha intuição — que é outra maneira de dizer experiência de muitos anos —, diria que por volta dos próximos dois a três anos este assunto esclarece-se...”, conclui.
Por ora, ainda é possível imaginar muitos cenários diferentes para o vírus SARS-CoV-2, salienta a virologista Maria João Amorim, investigadora-principal do Laboratório de Biologia Celular e Infecção Viral do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. “O cenário mais favorecido pelos especialistas é que se converta num vírus que provoca epidemias sazonais, tal como a gripe”, diz. “Mas pode haver ciclos de epidemias não-regulares provocados por variantes capazes de escapar às defesas do nosso sistema imunitário, quer desenvolvidas após infecções anteriores quer após a vacinação”, acrescenta.
“Por último, podemos imaginar a introdução de coronavírus provenientes de animais suficientemente diferentes dos que já circulam na população e originem doença grave. É por isso que é importante determinar qual o animal que infectou o ‘paciente zero’ [da covid-19], e se o vírus circula nestes animais. Esse tipo de vigilância faz-se regularmente para a gripe, onde as aves domésticas e os porcos podem transmitir vírus zoonóticos novos ao homem”, explica Maria João Amorim.
Competição
Numa fase inicial, a grande arma do vírus na competição entre as estirpes é a transmissão. “Quanto mais transmissível for, mais fácil será tornar-se predominante”, diz Jaime Nina. Isso tem acontecido com as variantes do SARS-CoV-2. “Mas quando começa a haver uma percentagem muito grande da população com imunidade — e nos países desenvolvidos isso já acontece —, a transmissão não chega. Tem de ser capaz de infectar pessoas que já têm alguma imunidade. Isso é uma má notícia para nós, porque provavelmente as estirpes que se vão seguir à Ómicron serão capazes de infectar pessoas já imunizadas”, antevê.
“A estirpe original, a covid-19 de Wuhan, estava mal-adaptada ao ser humano, era provável que se transmitisse mais facilmente entre os morcegos do que entre os seres humanos. A pouco e pouco, está a tornar-se mais adaptada ao ser humano, se calhar à custa da capacidade de transmissão nos morcegos. Isto sucedeu com outros agentes infecciosos. Seria curioso saber se está a acontecer com este vírus...”, sugere Jaime Nina.
Mas podemos estar certos de que o coronavírus SARS-CoV-2 vai evoluir para uma forma menos agressiva? “Não podemos, para já”, diz Maria João Amorim. “O vírus adquire mutações ao acaso, e umas tornam-se prevalecentes porque têm vantagem. Aqui a pressão selectiva positiva é na transmissão, a chegada a mais pessoas. Se percebermos que, para se transmitir mais eficazmente, o vírus tem de permanecer no tracto respiratório superior, e que isso leva a uma diminuição da hiperinflamação — que é um efeito indirecto da infecção, e pode atacar e danificar todos os órgãos –, então podemos pensar que o vírus poderá vir a ter menos impacto na sociedade”, conclui.
“Não penso que o vírus irá ser erradicado, seria muito difícil, pelo que é expectável que haja mortalidade associada a SARS-CoV-2 todos os anos. Mas, havendo monitorização e medidas de protecção, podemos controlar os seus piores efeitos”, salienta Maria João Amorim.
“Quando toda a gente tiver uma imunidade sólida, a covid-19 pode muito bem passar a ser como os outros coronavírus que causam só constipações, uma pessoa tem dois ou três dias uma febrícula, espirros, e acabou, mais nada. É um cenário possível. Digo-lhe daqui a quatro anos se vai ser assim...”, prevê Jaime Nina.
“Mas a questão crítica é saber quais os mecanismos de vigilância a pôr em prática para nos permitir continuar com as nossas vidas (com equipamentos de protecção pessoal só até que seja necessário). Isto porque os vírus respiratórios não conferem imunidade de grupo no sentido clássico, estéril, ou, por outras palavras, que previna a reinfecção”, diz. Mas temos uma protecção importante para doença grave, depois de sermos infectados ou vacinados (e recebermos um reforço, se for necessário). “Os dados são consistentes e dizem-nos que as vacinas são o caminho a seguir para controlar o SARS-CoV2”, conclui a investigadora.
Dizemos “já chega”
Mas a sociedade está ansiosa por pôr um ponto final nas perturbações causadas pela pandemia. “O Governo anda atrás da comunidade, sempre. Agora que a mortalidade não é o que era, com a Ómicron, as pessoas decidiram que já chega”, diz Jorge Varanda. “As frases que dizem são: ‘Estou farto disto’, ‘isto não é vida’, ‘não podemos viver assim para sempre’.”
“Só que vamos perceber que quer o início, quer o fim [da pandemia] não são únicos. Isso é a nossa cosmovisão judaico-cristã a falar, queremos uma visão quase criacionista: foi neste ponto, neste lugar, com este doente, que começou a epidemia. Mas a vida não é assim, a biologia não é assim”, frisa Jorge Varanda.
“O fim de uma pandemia, que é muito confuso mesmo no contexto de um país ou região, não acontecerá de certeza simultaneamente em toda a parte”, alerta Dora Vargha. “Mesmo que alcancemos alguma espécie de fim em Portugal ou na Europa, será que podemos usar isso como o ponto de partida para determinar o fim da pandemia, se vastas áreas do mundo continuam sem vacinas e se o vírus continua a circular, e a causar surtos noutros locais — e a ter espaço talvez para que surjam novas variantes?”, interroga. “Não há uma experiência ou percurso único da pandemia, portanto também não pode haver um caminho único de saída.”