A pirâmide do (in)sucesso em ciência
Em Portugal concluir um mestrado é linear, apesar de tudo. Quanto aos quatro anos de um doutoramento, são relativamente acessíveis. O problema vem a seguir.
Quanto se interage com ciência, e com os investigadores que a produzem, há coisas que a maioria das pessoas não terá noção. Estes investigadores seguiram um percurso regular e previsível, mas as suas expectativas são diferentes em cada nível. O primeiro, no final da licenciatura e no mestrado, é parte de um percurso básico de formação, para múltiplas ocupações. O segundo nível, o doutoramento, implica uma formação avançada específica, com o objetivo de formar investigadores com alguma independência; algo que terão de confirmar posteriormente em pós-doutoramentos, o terceiro nível de formação. Que, na verdade, se pode arrastar (com outras designações) por décadas.
Em Portugal concluir um mestrado é (deve ser) linear, apesar de tudo. Quanto aos quatro anos que tem (devia ter) um doutoramento, são relativamente acessíveis mediante as bolsas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), considerando a elevada taxa de sucesso de uma candidatura (cerca de 40%, superior para bons grupos). O problema vem a seguir.
Os concursos para investigadores doutorados, ou para os projetos que os podem contratar, têm taxas de sucesso que serão cerca de 10%, na verdade quase sempre muito menores, se formos sérios a analisar os resultados. E são, sempre, posições temporárias (3-6 anos, por vezes menos). Por outro lado, a verba para contrações nas instituições (universidades, politécnicos, centros de investigação) também não é muita para a oferta existente, nem, sobretudo, para as necessidades dessas instituições. Não admira que pais de alunos, em abstrato muito orgulhosos com o seu sucesso, me perguntem o que vão eles fazer concretamente da sua vida. A resposta é que terão lugar num mercado global e diversificado, porque a sua formação é excelente. É uma boa resposta, exceto para um país que queira aproveitar quem forma.
Nesta fase já treinei algumas dezenas de alunos de doutoramento. Quando me reformar abrirá (teoricamente) um só lugar para me substituir. As contas são fáceis de fazer. Por outro lado, quando presido a júris de teses de mestrado duas coisas me chamam a atenção, uma boa, outra menos. A boa é a qualidade e preparação dos alunos, claramente com mais potencial diferenciador do que a média da minha geração com a mesma idade (desculpem lá malta...). A menos boa é que alunos dos mesmos grupos apresentam teses com tópicos similares, e a grande maioria pretende, estimulada pelos orientadores, seguir para doutoramento, com um projeto de continuidade. Sendo grupos e alunos bons as possibilidades de sucesso são elevadas.
Mas estas pessoas muito inteligentes não sabem no que se estão a meter? Os alunos talvez não (e um emprego de quatro anos parece ótimo, consideradas as alternativas), mas os orientadores, que lhes oferecem esta continuação como quase inevitável, não têm desculpa, nomeadamente os investigadores mais jovens que se querem impor na carreira, e que estão a viver a precariedade em todo o seu infeliz esplendor. No meu grupo há várias, todas precárias, com uma única exceção. Mas trabalham para serem líderes; e, para isso, passe a redundância, têm de liderar. Daí resulta que eu tenha de abdicar desse papel. Essa parte é fácil (para mim, sei que não é universal). Tenho todo o prazer em ajudar, dar ideias, comentar, pesquisar, escrever e reescrever, sugerir, criticar, aconselhar. Não é fácil quanto não concordo com as opções tomadas, mas aprende-se. E não preciso de ser o último autor sempre (sequer autor, se não se justificar), o coordenador de todos os projetos, o orientador universal, ou quem aparece sistematicamente a apresentar em público e em ações de divulgação.
A questão é que noto um efeito perverso, que é a tendência que as minhas colaboradoras têm para aceitar novos alunos para mestrado, e depois doutoramento, mesmo considerando as circunstâncias (suas, do próprio grupo, futuramente dos alunos). Não que cada caso isolado não faça sentido, mas, todos juntos, pode não fazer.
Porque motivo o fazem? E porque não me posso opor com mais veemência, para além de lhes dizer exatamente o que digo aqui? Porque a formação independente faz parte dos parâmetros com que as avaliarão enquanto investigadoras com capacidade de liderança, e precisam destes indicadores. Multiplique-se este efeito por várias centenas de grupos em Portugal (como avaliador de bolsas de doutoramento da FCT posso garantir que é o caso) e, mesmo que façamos um esforço (e fazemos) para que cada aluno tenha um projeto único que o individualize, temos a receita perfeita para um perverso esquema de pirâmide, com sucesso a curto prazo, que gera insucesso a médio.
A “solução” cínica atualmente em curso consiste em esperar que pelo menos alguns precários doutorados (a diferentes níveis) emigrem ou se cansem e mudem de vida, tornando o problema mais “controlável”. Mas se se continuar a alimentar o sistema a montante, o que muda?
Obviamente que é impossível imaginar lugares numa carreira científica idêntica para os milhares de alunos de doutoramento em Portugal. Nem tal seria desejável, o apropriado era que esta precariedade em ciência fosse temporária. Deveriam existir, em permanência (não episodicamente), algumas posições de carreira (não inúmeras, ou, tal como com o ambiente, hipotecamos a carreira de gerações futuras), com as tipologias que as instituições entendessem, bem como um percurso exigente (não artificialmente baseado em antiguidade ou tipologia de contrato) para as atingir, com parâmetros claros adequados às especificidades de cada área; mas nunca um processo rígido, que muitas vezes seleciona medíocres com excelentes indicadores. Ou seja, que houvesse um percurso (minimamente) previsível para o qual se pudesse planear, e do qual se pudesse, também, desistir caso fosse óbvio que os parâmetros necessários não iam ser atingidos. Ou, em alternativa, assumir a precariedade disponível enquanto escolha consciente (nunca ideal). Nesse caso poderíamos atribuir aos próprios alguma responsabilidade, algo que, de momento, seria intelectualmente desonesto fazer.
Claro que seria também conveniente garantir que todos pudessem contribuir para a melhoria de inúmeros aspetos da nossa sociedade. Muitos fazem-no em várias áreas (engenharias, indústria farmacêutica, etc.), mais deveriam poder fazê-lo. Em empresas, agências, autarquias, no sistema de saúde, enquanto empreendedores, em comunicação de ciência a vários níveis; como artistas e dinamizadores culturais. Sobretudo deveriam fazê-lo sentindo que estão a cumprir a sua função enquanto mestres e doutores de um país que se quer moderno. Não que “falharam” na ciência, que é o que o treino que tiveram tende a expressar-lhes. Mesmo num grupo como o meu, em que é direta a empregabilidade noutros tipos de carreiras (e ainda bem), muitos ex-alunos despedem-se envergonhadamente, quando as suas escolhas são naturais, e para ser celebradas. Isto tende a mudar (e fazemos esforços constantes nesse sentido), mas tem de mudar mais, com a ajuda de líderes com obrigação de ver além do umbigo, e perceber o que podem e não podem prometer aos seus alunos (conhecimento e carreiras, respetivamente). Que não são, nunca é demais repeti-lo, iguais a eles quando eram mais novos.
Esta espécie de desespero surdo nunca verdadeiramente verbalizado pode potenciar outras práticas, e por em causa a integridade da própria ciência; sobretudo se não houver formação sistemática e mecanismos para combater más práticas em investigação científica. Será algo a discutir noutra altura.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico