A charlatanice da acupunctura legitimada em tribunal
Se a acupunctura conseguisse apresentar provas das suas eficácia e segurança, não necessitaria do favor da legislação especial: os seus tratamentos seriam aprovados como quaisquer outros.
Imagine alguém que vende torradeiras que não funcionam. E imagine ainda que essa pessoa vai frequentemente à televisão, onde os apresentadores se desfazem em sorrisos cúmplices. Que são postas a circular histórias de clientes satisfeitos. O vendedor dizia que a torradeira tinha um circuito eléctrico e que, portanto, havia um fundamento científico. Há muito que se sabia que essas torradeiras não funcionavam, uma vez que, dada a sua popularidade, se tinham feitos milhares de ensaios. Nestes, colocavam-se algumas fatias de pão nas tais torradeiras e um número igual de outras fatias iguais dentro de uma torradeira que funcionava. No final, comensais que não sabiam como tinham sido preparadas as fatias diziam se elas estavam torradas ou não. E as torradas nunca vinham das torradeiras que não funcionam.
Houve vozes dissonantes sobre as torradeiras que não funcionam. O vendedor, que tinha uma perna na política, teve então a brilhante ideia de convencer os seus aliados na política a aprovar legislação que regulamentava as torradeiras que não funcionam: apenas certas pessoas, a quem era passada uma certidão profissional, é que as podiam vender. Estas tinham de ser licenciadas em torradeiras que não funcionam, cursos cujos conteúdos programáticos eram também definidos pelos políticos. Obviamente que assim seria mais difícil duvidar da eficácia do referido electrodoméstico.
Mas várias pessoas continuavam a insistir na falta de provas de que as torradeiras funcionavam. Uma delas em particular, na Internet, meio onde a cortesia não abunda, a dada altura presenteou o tal vendedor com epítetos como “charlatão” e “vigarista”. O vendedor, escudado pela legislação aprovada, avançou para a justiça com queixa por difamação. Disse que sofreu danos, alegando mesmo ter passado a ter dificuldades em dormir. E o tribunal, apesar de todas as provas de que aquelas torradeiras não funcionam, resolveu dar razão ao queixoso, condenando o tal indivíduo a pagar-lhe uma avultada indemnização.
A história, torradeiras à parte, é infelizmente verdadeira e aconteceu com o médico João Cerqueira, condenado a pagar uma indemnização de 15 mil euros ao praticante de acupunctura Pedro Choy.
A acupunctura é, de facto, uma torradeira avariada. Foram já feitos milhares de ensaios clínicos e centenas de revisões sistemáticas da literatura médica para avaliar tratamentos de acupunctura e as conclusões são uma de duas possibilidades: ou a acupunctura não mostrou eficácia terapêutica no tratamento de determinada doença; ou, nalguns casos, há indicações muito ligeiras da eficácia da acupunctura no tratamento de certa doença, mas os métodos são inadequados e as amostras demasiado pequenas. Isto inclui o tratamento da dor e o seu uso como método de anestesia (que não é possível, ao contrário do que Choy alegou no programa Prós e Contras de 1 de Abril de 2019). Aliás, se a acupunctura conseguisse apresentar provas das suas eficácia e segurança, não necessitaria do favor da legislação especial: os seus tratamentos seriam aprovados como quaisquer outros.
Mas o facto é que para nenhum tratamento de nenhuma terapia alternativa é exigida qualquer prova de eficácia para estar no mercado. E tudo isto tem consequências. Sabemos, por exemplo, que os doentes com cancros curáveis que também recorrem as terapias alternativas têm uma taxa de letalidade ao fim de sete anos muito superior àqueles que apenas recorrem a tratamentos convencionais.
O que é que podemos chamar a um “charlatão” quando não lhe podemos chamar “charlatão”? “Praticante de charlatanice”? “Adepto da charlatanice”? Segundo o Dicionário da Academia, “charlatão” é um “indivíduo que vende drogas e mezinhas, atribuindo-lhes qualidades curativas que elas não possuem. (...) Pessoa que proclama méritos ou qualidades que realmente não possui”. “Charlatanice” é, segundo o mesmo dicionário, a “arte de explorar a credulidade das pessoas através de falsas doutrinas, teorias, promessas vãs...”. O que é que se pode e deve chamar a um indivíduo que defende a teoria da Terra plana, a homeopatia ou a acupunctura para “curar” a homossexualidade (sim, foi também isso que Choy fez)?
Porque, apesar de tudo, queremos acreditar na justiça, esperamos que este caso seja revisto na instância seguinte. Seria muito mau para a imagem da nossa justiça se a sentença proferida transitasse em julgado.
P.S. — Fomos testemunhas de defesa do médico João Cerqueira na única vez que, até hoje, cada um de nós foi chamado a um tribunal.