A morte de uma adolescente no Egipto relançou a discussão sobre violência sexual online
A morte de uma adolescente egípcia que viu imagens falsas sexualmente explícitas serem partilhadas por toda a escola relançou a discussão no país e a nível internacional sobre violência sexual baseada em imagens. O caso é mais uma prova de que “os mecanismos de prevenção focados nas vítimas são limitadíssimos”.
O cibercrime e a violência sexual baseada em imagens estão a ser ferozmente discutidos no Egipto e noutros países árabes depois de fotografias e vídeos manipulados de uma jovem de 17 anos terem sido partilhados online com os colegas e professores da escola.
As imagens terão sido criadas e publicadas depois de Basant Khaled negar ir a um encontro com outro jovem, contou a irmã ao site de notícias egípcio Youm7, citado pela BBC. Quando os colegas começaram a ver e partilhar as imagens em que supostamente estaria nua, a adolescente entrou num estado cada vez mais depressivo e acabou por cometer suicídio.
Duas pessoas terão sido detidas, a 4 de Janeiro, por “extorsão e utilização das redes sociais de uma forma que causa danos a outros e que levou à morte de uma menor”, escreve a agência noticiosa AFP. Também terá sido questionado um professor que deixou a jovem perturbada ao humilhá-la em frente à turma.
Uma hashtag a exigir justiça por Basant Khaled, em árabe, chegou às tendências do Twitter e reabriu uma discussão internacional sobre uma forma de violência que, segundo a investigadora Maria João Faustino, “não pode ser resumida ao contexto egípcio e muçulmano”.
“O caso é muitíssimo importante. Para já, porque comprova mais uma vez a urgência de falarmos sobre violência sexual baseada em imagens. Mas, mais do que isso, para falarmos sobre manipulação de imagens, as chamadas ‘deep fakes’, que provam, mais uma vez, e como se precisássemos de ser recordadas, que os mecanismos de prevenção focados nas vítimas são limitadíssimos no alcance e na eficácia”, diz a investigadora, que coordena um estudo sobre o tema com jovens portuguesas.
Maria João Faustino diz que o caso deveria provar como “as nossas abordagens falham, quando não lidamos com o problema em si e estamos sempre a pôr o ónus de prevenção e culpabilização na vítima”.
Depois de ser chantageada pelo jovem, que ameaçou partilhar as imagens fabricadas, Basant Khaled terá visto as fotografias, que se espalharam rapidamente pela escola, no telemóvel de um dos professores que lhe davam aulas particulares. Chegou a casa a chorar e, depois de a família insistir, contou o que se passava.
“Acreditávamos que ela estava inocente e tentámos apoiá-la, mas ela não foi capaz de aguentar os comentários das pessoas”, disse a irmã, dias após a sua morte.
O Conselho Nacional em Defesa das Mulheres do Egipto condenou o “crime punível por lei” e incitou as mulheres a não terem medo de apresentar queixa às autoridades ou através de uma linha telefónica directa. Maya Morsy, que preside ao órgão, apelou aos pais a que acreditem nas filhas, que as apoiem e ajudem a ser “mais confiantes”.
Também por estes dias, no Egipto, a Citroën lançou e depois retirou um anúncio em que um dos mais conhecidos cantores pop do país, Amr Diab, fotografa uma mulher sem o seu conhecimento, supostamente para destacar as características da máquina fotográfica do carro. O anúncio foi retirado depois de a empresa fabricante de carros francesa ser acusada de normalizar o assédio sexual.
Está a ser amplamente partilhada uma imagem da nota escrita à mão que a jovem terá alegadamente escrito e deixado à mãe no meio de um livro, e que a BBC traduz do árabe: “Mãe, sou uma jovem rapariga e não mereço o que me está a acontecer. Estou muito deprimida. Não aguento mais isto. Estou cansada. Estou a sufocar.”
Quem criou as imagens terá começado por enviar um link para a jovem de forma a conseguir aceder a imagens no telemóvel, disse o advogado da família, que fez a queixa à polícia, na província de Gharbia, no Norte do Egipto. O advogado nomeou o jovem que não aceitou o “não” de Basant Khaled e outra pessoa que a jovem terá acusado antes de morrer.
Muitas vezes chamada “pornografia de vingança” ou “pornografia não consentida”, a distribuição de vídeos, imagens ou mensagens explícitas ou íntimas sem consentimento é crime em Portugal e encaixa melhor numa forma de “violência sexual online, ou de abuso, como é designada nos países anglo-saxónicos.
Os investigadores que estudam o fenómeno defendem que reduzir a partilha não consentida de “pornografia” retira a atenção do agressor e projecta-a na pessoa que viu a sua intimidade violada. Além disso, a vingança não é a única motivação que leva alguém a manipular imagens e a partilhar uma fotografia, vídeo ou mensagem de texto ou som com cariz sexual ou íntimo que lhe foi enviada com expectativas de privacidade.
Em Portugal, a associação Não Partilhes, que tenta apoiar vítimas de abuso sexual online e divulga informação e testemunhos, mencionou o caso nas redes sociais, para prestar solidariedade e mostrar as severas consequências deste crime.
“Actualmente, com o grau de sofisticação que as imagens têm, é muito fácil arruinar a vida de uma pessoa no conforto de uma sala, com pouco software”, lamenta Maria João Faustino, que volta a lembrar a importância de uma “mudança de abordagem” que desvie o foco “dos discursos de prevenção”. “A responsabilidade da violência sexual é sempre de quem a exerce”, conclui.